quarta-feira, maio 15

Noturno 6,9

Os sinos d’antanho se desdobram num cortejo de partidas imemoráveis
Um instante rústico que rutilou minha coleção de imagens esmaecidas
Flores da manhã expetaladas, onde escondi o rosto na carga das horas
Desenhei um poema com palavras desmedidas no silêncio das sombras
Apenas mais um ato na construção dos fatos, um grito mudo na boca
Na mão côncava, uma mainça de terr’arada, instante de logro e tédio
Se hoje são manhãs de mornos albores, há uma década fora só abismo
Flashes de vida entre parênteses, vi nas sombras o caminhar da morte
U’a tarde outra noite vi o laço do espaço em fúria, vi o vulto do luto
Senti a lâmina fria e se fizeram insignificantes todas as demais chagas
Senti o fio agudo vir de dentro do peito, ouvi o grito surdo do adeus
O destino sinou-me a tal passagem e ainda esquivar do brilho do aço
Descobri quanto o tempo pode ser avaro, descobri o dia pelo avesso
Sei que a morte anda vizinhando e o dia que chegar não haverá aviso
Nesta várzea grisada de perguntas as quais carrego desde a infância
Mas, algo me diz que não é hora de desatar os laços das lembranças
Ainda não aprendi a viver segundo receitas numa conduta ordinária
É o extraordinário que instila a forma que nascerão os meus versos
Tortos eu sei, são a insígnia personificada d’uma juventude rebelde
Certo ou errado, são silêncios passageiros, não há solidão na poesia
Foi assim que rejeitei atitudes que teriam me levado à riqueza fácil
Recebi em troca, o benefício de cruzar portas co’a cabeça erguida
E deitá-la no travesseiro certo que mistérios são só fábulas infantis
E o que nos resguarda são perguntas que só o sonho tem respostas
Da verve inconformista, à resignação que jamais preencheu o vazio
Efêmero que sou, escolhi a insanidade, a lucidez carece ser infinito

 


segunda-feira, maio 13

De vingança

Os corvos voam entre macieiras espalhando o polem
Fora de ti tudo o que resta é meu escrito amputado
Os meus ouvidos fatigados e minha memória pesada
Enquanto maio esmiúça a raiz das febres de menino
Ergo os olhos como se te visse neste dia de desvario
Isto me parece uma pretensão um tanto antagônica
Posto que não tenho nenhum pretexto para te falar
Já que até o livro que te emprestei, tu o devolveste
Aguo a terra com o regador, brotam dentes-de-leão
Pelo jardim o gato corre lá e cá a espantar pássaros
Qual eu corria ao teu encontro enquanto tu fugias
Mas o amor foi a flor que morreu por falta de regar
Confesso que choro ao cortar cebola para o molho
Choro junto com quem chora por ler meus poemas
E recordo ter conhecido cada rincão de teu corpo
Cada fibra, cada músculo e cada milímetro de pele
Mas se nada escrevi no poema é que fui cavalheiro
Por um momento meus pensamentos fluem qual rio
Inundando-me a cabeça com a imagem de teu rosto
De vingança vou escrever um verso nu e te dedicar
 


quarta-feira, maio 8

Pampa Submersa!

Na espera do amanhecer, chegou a chuva e seus mortos
Olho a estação vazia e os trilhos uma longa língua cinza
Vejo a cauda de fumaça da locomotiva na cena distante
O ar vibra ao som da harpa e traz a mensagem dos anjos
As pessoas do trem seus corpos escurecidos de tristeza
Choram lágrimas de sangue, soluçam os pássaros mortos
O coro das ausências, em fileiras aguardam no cemitério
 
Na espera da luz e a morte vem detrás de tantas pupilas
O sangue derrama-se sobre a bandeira lavada de pranto
Por amargas sombras de nuvens na revolução das águas
A insônia rouba os sonhos, inundando tudo às centenas
As pessoas reunidas, mas não há festejos, riso ou canto
A lua desnuda a tudo assiste, boquiaberta, terra abaixo
As aves de rapina agindo livres, as serpentes de espanto
 
Na espera do dia, os perigos da noite seguem arrastados
Há uma busca atormentada pelo último torrão de terra
Uma talisca de chão seco e enfim expulsar as cascavéis
Povo que padece nas caravanas ao sul azul do cruzeiro
Vãs promessas mirabolantes, inexequíveis e ultrajantes
Oprimidos e inermes meio a contingências improfícuas
Conservam a esperança nativa da gentil alma brasileira


sexta-feira, abril 26

Peixe

 Procuro-te como o peixe que nada em seu aquário de desejo
A te buscar na água turva de dores de tantos outros verões
Dor que só tu apaziguas nesta instância de abismos e trevas
Por onde sigo, sonâmbulo e ferido entre a crueza das cinzas
Na lembrança de tempos mais augustos que tocava tua mão
No ardor da ilusão há a fria voz que, indiferente, me chama
Mente como se a eternidade fosse cicatrizar a ferida aberta
Na neblina de tua ausência, na nostalgia cinza de teus olhos
As reminiscências de outra vida se espalham pela penumbra
No oceano da distância é tudo tão mais agreste e profundo
O equinócio de vida e morte se reflete pelos espelhos rotos
Sob a luz boreal que esconde o tesouro d’um amor perfeito
O sol fugidio resvala pelas águas do mar, entre as palmeiras
Minh ’alma avança rumo ao arrebol entre ruas que dormem 
Cheias de frutos maduros dependurados no esquecimento
Enquanto oro por salvação na transparência deste silêncio
Meus eclipses se erguem diante de brancos altares sitiados
As respostas negam as perguntas do vento soprando do sul
Nem assim movem uma única folha entre ramos acobreados
E o que resta é sonhar com os movimentos de tua chegada
A cadência exata de tuas pernas, o cliquear de teus passos
Pergunto por ti aos anjos que encontrei na porta principal
E me disseram que o que importa, é o caminho percorrido!


quinta-feira, abril 18

Lembro

Lembro de tudo, como se o tempo tivesse parado
Toda a quietude do jardim tem o som d’um templo
Uma atmosfera um tanto ingênua sob tíbias folhas
Na imagem mais cara da memória em traços finos
Deusa de olhos levemente orlados de sombra azul
Como os teus, agudos, inquisidores e perspicazes
No silente mármore gravado em suavidade sedosa
 
Dizem que todos, um dia desses, virão a esquecer
Mas só nós caminhamos nas alamedas de gerânios
Conversas abertas sem jogos vertiam um perfume
Ontem quando escrevia, ouvi um pardal na janela
E por nada, logo voou pra perto das amendoeiras
Tal como tu fazias nas margens lentas dos ocasos
Pois sei que no espelho não há palavra tão bonita
 
Lembro de tudo, para ser trivial, tal fosse ontem
Desde que ouvi a suavidade maciez de teu canto
Do tato e das centelhas que saltam com o toque
Dessa tatuagem de traços limpos nunca estática
Como nunca vós, incultos, podíeis imaginar fosse
Esses teus lábios de amoras, tersos, tão queridos
Mas que, cruel destino, nunca me permiti provar
 
Quiçá o tempo me force a perder umas migalhas
Mas não quão desafiamos as profecias zodiacais
Juntando-nos tal qual nunca seria para se juntar
Lembro até quando a cidade parecia uma aldeia
Onde podíamos caminhar sem medo e sem rumo
Lembro de seu corpo monumento, de seu hálito
Eu lembrarei de tudo mesmo se o silêncio chegar
 
Por prazer escrevo este poema, palavras que não
preciso escrever, pois jamais me esquecerei de ti

sexta-feira, abril 12

Queda

 

A praia abraçava teus dourados cabelos banhados do sol

As aves marinhas cantavam teu nome bailando pelos céus

E a brisa cálida espalhava um bálsamo de verão pela tarde

O mar que mansamente beijava a areia, iniciava o ondular

Espalhando o branco da espuma até onde se pode avistar

Das falésias vimos o crepúsculo despedir em raios rubros

Lembro o doce brilho intangível de teus olhos luminosos

Quais faróis salvando da velha dor selvagem e angustiosa

E no teu seio fui aprender a sorrir e desdenhar da morte

Mas o riso certo dia calou-se e vieram trevas impetuosas

E a melancolia fria qual um lamento tomou conta de mim

Um abismo onde antes fora o brando horizonte azulado

Torna a clara paisagem limitada ao infortúnio misterioso

Da imagem de teu corpo, triste, e as espumas em sangue

De suas asas imóveis, conspirando a um transe pungente

Cena e forma incipiente debaixo de meus olhos atônitos

Numa múltipla certeza de uma queda e de um final veloz

De um único sopro e o vento a sacudir tuas leves vestes

E o encontro com as duras rochas foi um só pensamento

Uma dor instantaneamente agigantada num golpe de luz