quarta-feira, agosto 28

Caracol

Eu poeta tardio, minha voz tardia sem rimas ou razão
Tu sim, tinhas razão, eras a andorinha do meu verão
Eu só sei que não sou eu quem sonha nos teus sonhos
Nem me vejo nu fingindo esconder-me dos teus olhos
Diante de ti, nua, tão felizes ríamos só para provocar
Brincar com nossos corpos nas tardes de sol a brilhar
 
Amava ouvir de tua boca “não vá” se eu afobado saía
Deixando todo esse azul entre nós na distância vazia
Tanto melhor se das promessas que fizemos, nem falar
Nunca mais ouvi minha caixa de música mágica tocar
Em mim, teu confessionário e me arrepender de nada
Eis que bastava duas salve-rainhas e a fita rebobinada
 
Sabias que meus ‘eu também’, queria dizer ‘eu te amo’
A verdade lúcida desse amor dispensaria um e outro
Mas mesmo quando sabias que era real, querias dizer
Mas um dia tu não voltaste e. rude, o telefone tocou
A voz disse algo sobre teu coração que nem entendi
Pois era meu teu coração e eu não o permitira parar
 
Toda a alegria daqueles dias, transmutou em sombra
nem sei mais quem eu sou, sob este céu enlutado
Hoje o médico disse que não é caso de amnésia, mas
Eu trocaria a memória, por uma noite sem pesadelos
Então só pude descrever a expressão de meus olhos
Como o espanto do caracol que cruzou a linha de sal

 


segunda-feira, agosto 26

Intimamente Estranhos

Pra que fugir se não há novos caminhos por onde ir
Já andei tantas ruas, andei por andar e todas iguais
Ruim por ruim, uma noite numa Istambul esquecida
Os casebres, as mansões, as senhoritas nas esquinas
Outros tão velhos poetas se esquecem por cansaço
É que trago na algibeira sete poemas e é dia dezoito
O céu continuará na tarefa de emoldurar as nuvens
Elas que o esconderão quando o dia vier de chuva
A noite de lua nova exibe com sua luz miniaturista
Aos meus olhos também tão chuvosos, sua paisagem
Diante de mim árvores irretocáveis, pássaros exatos
Na infância traída sentado nos degraus da catedral
Lá dentro, seus dogmas, aqui fora é noite, lá trevas
Disso, guardo no peito os sons de sinos dominicais
Mas, nos ouvidos o que resta é apenas um zumbido
Já é dia vinte e cinco e o sol a golpear minha janela
Se ao menos invés de março retornasse a setembro
Aqueles que eram amantes, ora mal se reconhecem

segunda-feira, agosto 19

Humanos

 Vida de cada dia
As máculas cotidianas
Importa perder-se
Para nos encontrarmos
Morte de cada dia
Uma falsa pureza
Inutilidade ou salvação
Beneplácito perdão
Dia de cada dia
Corre-se a compartilhar
Gestos, invencionices
Cegos da verdade
Vida, morte, dia
Não sendo perfeita
A raça humana
Perdoa-se em Seu nome

segunda-feira, agosto 12

O Todo

Anuncio aqui um poema desenraizado do silêncio
O silêncio que mais que silêncio se fez melancolia
Na angústia inquietante que veio com tua partida
No contraste de quando chegaste tão lentamente
Partiste tão de repente que não pude me despedir
Qual as ondas colidem bruscamente nos rochedos
E se vão como espuma branca que parte tão veloz
Partiste tão rápido que até os pássaros se calaram
Também as flores do jardim já começar a murchar
Mas tu descobrirás amiúde, toda a dor da solidão
Em meio ao festim na soturna dança dos oráculos
Ou quando se recordar dos ritos entre arvoredos
Saberás dos meus caminhos nas palavras do vento
Enquanto a tarde exala um cheiro de terra úmida
Não olvides que minha voz não estará à tua porta
Quando te fostes, restou o desafio da melancolia
Recorda, pois não foi fácil me desgarrar de tanto
Quando teu nome era o único signo da esperança
Mas isso se foi, hoje pisas entre as aves de rapina
E assim te distanciastes das dimensões iluminadas
Se o tempo se fez teu inimigo, a mim não intimida
O poema não se faz de palavras esquivas e fugazes
Na busca celeste e límpida da germinação do jogo
A poesia não é o meio ou a extremidade, é o todo

 


terça-feira, agosto 6

Cúmplice

O perfume cálido do jasmim preenche o ambiente
A selva lá fora enorme, aqui um fragmento de sol
Em tudo fui criado em antigos rituais de inocência
O barulho da tarde, cresci no murmúrio da grama
Onde todas histórias vieram dançar fronte a mim
Dentro da noite sou sombra, escuridão eloquente
Palavras ácidas que devoram o sigilo dos sentidos
Neblina que turva a visão, entorpece os sentidos
Mas em cada verso sobrevive um abraço apertado
Ainda que para vencer a estrada, sigamos pisando
A lama enxarcada de lágrimas sob a lua de agosto
Do cadafalso, da guilhotina, da videira e o sangue
Da história repetida, o louvor apagando o aqui só
Mas o ontem ainda está vivo, ileso no seu pedestal
A boca cheia de estrelas, negando nosso inferno
O poema é a cicatriz que ficou onde era a ferida
O eco indiscreto repete o que não deve ser dito
Na rua quatro, no jardim na esquina com a cinco
Divago, sentado à janela, com a caneta nas mãos
Entretanto, calar-me não me afigura ser possível
A mudez é aquilo que em si nos torna cúmplices


quinta-feira, agosto 1

Quando

Nem sei onde o relógio parou para contemplar eu te despir
Sei que o tempo não anda desde ver o teu corpo escultura
A lua se acanha no brilho do teu sorriso luminoso de felina
Amanheço, mas não do sonho do qual és infindo manancial
Doo nosso abraço, acima da linguagem, a construir o verso
Para não ferir as palavras, sob a maravilha de tua geografia
Nunca a vida verá beleza tão pródiga sem clamar teu nome
Nunca uma beleza humana fará como tu silenciar-me a voz
Senhoria de minha vontade entre o relâmpago e a calmaria
Estas são substâncias impecáveis nas esquinas da memória
Imagens rubras de ócio e volúpia, o manto de seda diáfana
Só o que te cobre, enquanto sorvemos o azul do horizonte
No abrigo do teu colo, nada neste mundo é dor ou tristeza
Pelas estradas de peregrino avanço mais lúcido que nunca
Porém é chegada a hora de vestir teu jeans então partires
Mergulhar na selva de concreto profunda, além do jardim
Onde semeei tuas rosas, onde sou a videira e tu és o vinho
Onde na brisa da tarde, os pássaros murmuram teu nome
Onde eu espero o relógio parar de novo por te ver voltar