quinta-feira, dezembro 29

Antídoto

Esta insônia enlouquecida que desaba sobre todos os sonhos
É a matriz dos meus poemas que são um antídoto contra dor
E assim distribuo os versos, como um linimento sobre o papel
Não direi dos passos antigos de contornos tristes e caminhos
Calcinados e errados que andei, sem pretextos para nostalgia
Desejo fazer que a vida retome com força, abrir as pálpebras
Ver-me a salvo, pelo menos crer-me a salvo, que já é bastante
Se o poema não é a unção milagrosa, sem contra argumentos
Os versos também mostram o que atrairá viver às escancaras
Mesmo o que não é dito, não deixa de acontecer, só por isso
O que se necessita é conter o lamento, pai de tantas agonias
Mazelas não devem, malgrado não haja manual de instruções
Ser revelada aos inimigos. Deixar no vazio é mais confortável
Os noticiários é que veem como atrativo repetir os desastres
Há que se tornar surdo-mudo ou cego, mas atento aos signos
E não cantar, mas para espanto deles fazer como se cantasse
Sob um céu comum, uma só noite pode representar mil e uma
Bendita noite azul caminhando à deriva, mergulhar no enigma
Para ser outro e amar.  Amar com amor de valor, sem astúcia
Então, não se deixe levar por contradições que só a razão vê
O mundo tem máculas e não há feitiço ou fé que o desminta


sexta-feira, dezembro 23

Quando as nuvens passam e o céu é feito do azul cobalto
É sinal que nova chuva vem, o sol é só memória no poente
O eco meramente repete as mentiras que do vento ouviu
Ideia de futuros provisórios natos e findos em mausoléus
Há poucas coisas tão ensurdecedoras quanto é o silêncio
 
O poeta é resistência que não vai calar rasgando-se livros
Como mago, salva palavras em afronta à usual servilidade
Tatuando-as na lembrança, à esquiva de ímpias tradições
Nada aqui ou além, imóvel qual a pedra aceirada pelo rio
Assim ilude os algozes, oculta seus dentes entre a bruma
 
Desde as mais longínquas primícias, estava lá a oposição
Sempre fugaz fazendo o inventário de vantagens quistas
Toma lá, dá cá rumorejam ocultados detrás dos biombos
No mais, esperneios pueris desviam olhares de suas redes
Fica para trás dessa rápida investida, só o chão crestado
 
Um povo destruído pela intempérie, há tanto anunciada
Jacentes e esquecidos são os invisíveis aos olhos nobres
Dois brinquedos que flutuaram sobre a lama da omissão
Sinalizam famílias extinguidas, o fim das fábulas infantis
Homens de pudor incorpóreo de promessas incumpridas
 
Resta o odor acre da terra, o pasmo, o fervor sem fruto
O sol a burlar o cinza faz brotar a parede pintada a lápis
Emergem da lama escorrida em meio a outros destroços
Com a certeza de crianças que já nasceram moribundas
Serão lembradas entre lágrimas quando nova chuva vier
 
Ao poeta munido de sua pena, obriga recriar nos versos
O grito dos que não puderam gritar, qual fosse vinga-los
Evitar àqueles que, anos a fio insolidários, vistam louros
Façam-se protagonistas salvadores do mal que causaram
Olvidando que esse sangue derramado é do seu descaso
 
Mais um verão findo e almas soluçarão entre as árvores
A poesia impedirá esquece-los: são vítimas da corrupção

quinta-feira, dezembro 22

Feliz

 

Caminharei na multidão sem te ver
Tocá-la ou mesmo sentir
Na divina ignorância
De nada compreender
Caminharei surdo em silêncio
Nenhuma palavra direi
Voz ou mesmo som
Nem ao menos ecos abortados
Caminharei em meio ao cinza
Todas as cores apagadas
Todos relevos e percepções
Sepultarei os prazeres e as ausências
Serei, afinal, feliz.

sexta-feira, dezembro 16

Travessia

Lembro que era crepúsculo e o sol já ficara na memória
Sabia apenas de seu corpo esguio e seus olhos amêndoa
Nunca perguntei nada mais e nos víamos livres de culpa
Será que em todo beijo uma boca beija, outra é beijada?
Digamos fosse minha nada sagrada e única incomunhão
Um idílio ao acaso, sem compromisso, sob um céu limpo
Mas o tempo passa e tudo sob seu jugo vê o movimento
Por vezes quando, pela noite, a olhar pela janela da vida
Atinamos que a morte poderá vir, insolente e sem aviso
Sem esse amor anônimo a derramar uma lágrima sequer
Algo a guardar na memória, nem chance de despedidas
Nos vemos miúdos, um parcel de terra não demarcado
E saber se a morte de fato viesse, não ter onde deitar
Descobri, então, que tudo que eu tinha era desusado
Qual guarda-chuva sem pano ou violão sem saber tocar
Uma ponte a atravessar, ninguém na margem a esperar
Em meu livro mil páginas em branco tudo por escrever
Perguntei-lhe o nome e lhe revelei gostar mais de azul
Abri-lhe todas as portas, ela me contou seus segredos
O número de seus sapatos. Fizemos planos e foi assim
Decidimos aceitar todos avisos que o amor traz a dor
Porém do outro lado da ponte, onde havia tão pouco
Muito mais que outras coisas, temos alguém a esperar

quinta-feira, dezembro 15

Lúcida Insensatez

Desperto do sonho aos soluços, entanto não há lágrimas
Aquela imagem dolorida, outra vez vem a me deslumbrar
Seu vestido tinha um decote onde podia verter os olhos
A relembrar seu corpo tão meu, quanto minh’alma é sua
E aquela mulher iluminada, que suspirava como acordes
É só a pintura, que nas galerias da memória, já esmaeceu
 
É o que basta, pois tatuou-me na pele e carne o que sou
Desde o primevo dia percebi em mim que não seria igual
Em que nossos olhos enlaçados eram espelho do querer
Que, incontroláveis, nas tardes de amor eram incêndios
Quietude impossível, insônia enlouquecida, delírio feliz
O delírio que fazia subir de dois em dois, todos degraus
 
Imagem esbelta que vem de rompante, loucura e lucidez
Nostalgia que me derrota todas as cautelas de salvar-me
Sem planos e sem tremores, sem impaciência e sem votos
Apenas um réquiem como quem busca no esquecimento
Olvidar dos dias quando andávamos nus de corpo e alma
Onde o amor era nossa expressão de olfato, gosto e tato
 
Já se vão distantes os dias desse calor corporal, viscoso
O verão é uma névoa delicada que agasalha a atmosfera
Na dor eu canto, mas cerro meus punhos, não me rendo
Posso até trazer no poema uma dúzia de palavras pueris
Mas não olvide, sou o protagonista a permear os tempos
E enfim vê-la desgarrada da morte que enluta meu amor


terça-feira, dezembro 13

Algo a Esquecer

Há um caminho de enganos que me foi difícil de evitar
Nessas noites insones de seres afogados e incoerentes
Cujos equívocos vão estampados nas máscaras sociais
Dia a dia alienados, são fragmentos do que deviam ser
Caricaturas regimentadas serão convenientes a quem?
 
Basta sacar a câmera e soltam seus sorrisos estúpidos
Podem crer que Deus vai dar uma entrevista na CNN
Vitimados por unir-se à literalidade d’algumas palavras
Especialistas em quê sequer sonham conjecturar, vão
Festejando a bolsa de NY nem sabem mesmo o porquê
 
Para não cruzar por esse pântano das ideias enganosas
Regresso sobre as minhas pegadas e não deixar marcas
Pois sei que o mundo desordenado quer me confundir
Fazer-me garatuja sem rosto, um filme de roteiro ruim
Com seus espelhos ilusórios a dizer que o ator fora eu
 
Estendi a mão para te tocar e tu eras somente sombra
Tão só a bruma na calçada suja, algo para se esquecer


segunda-feira, dezembro 12

Hospede de Mim

Sou um hóspede de mim mesmo quando a noite vem
Chego sem esperar boas-vindas ou outras cortesias
Venho quando os ares já não mais são 'buenos aires'
Não carrego as afabilidades ou a polidez do cotidiano
Sou hóspede de mim quando a madrugada me clama
Andar ereto pela vida, é ser objeto de muita cupidez
Qual o porquê deste canto se nos negaram abraços
Se o horizonte é distante e é lá que está a ausência
Sou hospede de mim até que a noite, exausta, se vá
A pomba que trago nas mãos, não é um sinal de paz
Ela apenas se perdeu no meu quadro negro noturno
No coração em pedaços, não entende o que é amor
Sou hóspede de mim e é assim que resisto à vaidade
Urbanidade, civilidade, suavidade outras dades vãs
Não as possuo, antes, uivo distante e encho a noite
Qual o porquê desse canto se olham com sarcasmo
Na margem do rio que soa, seu canto é que resiste
Sou meu hóspede na noite entre árvores sufocadas
Quando cruzo a linha branca então vou-me embora


sexta-feira, dezembro 9

Porta dos Fundos

Entre todos os emplumados ilustres
Povoam, voam a poesia, contos tristes
Andorinhas e rouxinóis, beija-flores
E até cotovias e corvos, senhores
Atendendo dos poetas o chamado
Protagonizam as linhas do dobrado
E até a fogosa fênix vem e ornamenta
 
Entre todos os peludos mais famosos
Caminham nas linhas de poemas ditosos
Ursos e lobos, o leão e o tigre listrado
Gatos e cavalos se apresentam no estrado
Atendendo dos poetas a convocação
Protagonizam entre as linhas toda ação
E o fiel cão muita poesia o comenta
 
Mas, e os discriminados? Pardais e javalis
As rolas, os guaxinins e os bem-te-vis
Os pobres bisontes, anchovas e a chinchila
Caídos no esquecimento, estão nem na fila
Estes nos romances jamais comparecem
Será esta a chance única, que se apressem
De entrarem no poema o burro e a jumenta
 
Mesmo que seja só pela porta dos fundos