sábado, agosto 26

O anuário non sense de inutilidades

 Janeiro: não distribuo esmolas

Frequento rodas de luto pelos

Umbrais frios das madrugadas

Disputo com cães as calçadas

Nessas horas quietas e úmidas

No ar, um breve odor de uvas

Fermentadas como um poema

A embriagar algum desavisado

Fevereiro: prurem-no questões

Vergastam-lhe os olhos rubros

Alma desnuda nas intempéries

P’ra perseguir somente o nada

Por não calar, dizer algo inútil

Palavras malcheirosas ou nulas

Resíduos de todas as partidas

Março: Tremula essa chegada

Flâmulas fúteis ou até etéreas

Na hora que a dor devia doer

De tantos sonhos extraviados

E nem mesmo ainda sonhados

Nos espelhos de corpo inteiro

Ou das partes que persistiram

Abril:  A que serviria o braço

Se não usado para dar abraço

Não acenos chulos e gastados

Audição seletiva aflui a frase

Surda entre gritos subversivos

De pernas que não caminham

Vãs estradas já não caminham

No desejo atrelado às costas

Refulgente na áspera sombra

Maio: Sentidos em entranhas

No meu desvelo por meu país

De tantas vozes multíssonas

Dos parcos rincões distantes

Sumo de frutos tão variados

Só o chumbo te solucionará

Por sua insistência metálica

Na razão das mãos calejadas

Junho: No caminho, a pedra

Perigo por ruas desbordadas

Cereal ausente e ventre oco

Mesmo faminto das palavras

De todos livros inalcançados

Ou tantos poemas inescritos

Sem riso, calado, sem horário

Tudo respondido em silêncio

Julho:  Eu sou tão obstinado

Empunho tolices p’la estrada

Versos na poeira de décadas

Tão atuais quais eu ou você

E tão demodê quanto um cd

Ser poeta, esse ofício triste

Na calma planície do campo

Agosto: Tais gotas sombrias

Prisioneiro por noites e dias

Só a brisa resvala na parede

A poesia é o quanto abunda

Para se desigualar da morte

Silêncio ao fim d’um inverno

Que espera outra primavera

Vir nascida a gosto de Deus

Setembro: Debalde a cidade

Corrupia a fumaça cinzenta

A alimentar a fuligem do dia

De lonjuras incomensuráveis

Mui amplas e quase infinitas

Riso amputado e desgalhado

Nos faculta migalhas e jejum

Qual a chuva que nunca vêm

Outubro: Vamos desvivendo

No ar roubado que se exalou

Pelos vinhos anchos à deriva

O barro não criou diamantes

Séculos de rudes esperanças

Um dia que possa desmorrer

No credo de tudo e do nada

Novembro: não há elegância

Na falta da honesta angústia

P’la dorida tristeza cotidiana

Vencida mágica da paciência

Sem nem um pão para comer

O incansável canto do látego

Posto não entenda nem saiba

Cerrando bocas desdentadas

Dezembro: o tempo solidário

De corações vazios solitários

Nos chãos do retorno a casa

O perfume lilás tinge os dias

Dormidos na palavra ternura

A palavra surte além de tudo

 Aceno ao dia punho crispado

Um bom dia a rever os filhos

São poemas que a vida pariu

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