terça-feira, outubro 29

Mutuamente

Corpos noturnos entrelaçados, artífices da memória e do desejo
Minha pele de homem, a tua pele de mulher em verdadeira nudez
Que nem a luz do sol, nem a fúria do oceano conseguiria separar
A terra toda silencia diante de nós, corpos tomados pela volúpia
Corpo e alma reunidos, juntos somos o melhor de nossa história
Reunidos somente por vontade, a nudez é a nossa maior lucidez
Meu corpo ereto amanhecendo no teu é o que me torna humano
Corpo nu que me acolhe, tua gruta onde vida e morte coexistem
A noite que aos olhos do mundo nos esconde não nos traz limite
Olhar no olhar, inscientes ao que nos rodeia, falamos em silêncio
Sentados frente a frente, num ininterrupto balanço de vai e vem
Nesse movimento tal um sonho, o abraço nos liberta das amarras
É a vida que cruza arcaicos limites, não mais oculto ou surpresa
Lá estamos nós a nos descobrir, qual paladinos do mutuo prazer

Herança

O crepúsculo é o triste estandarte de nosso adeus
É uma cidade distante onde mora o esquecimento
Mas em mim ainda tremula a flâmula de teu sorriso
Que tinha como mastro e morada esses teus lábios
Essa é a herança que me coube dos antigos verões
Onde tu eras o monumento que adornava o parque
Porém também eras a árvore com raízes na mentira
Onde tantos versos que plantei nunca viraram flor
E a porta do jardim, indefesa, continua entreaberta
Minha cabeça hospeda sonhos não compartilhados
Um madrigal no canto de azuis pássaros vespertinos
Mas a voz que quis ouvir, se fez tão só de silêncio
Caminhei tantos caminhos margeados de espinhos
As pessoas que achei, não disfarçam tua ausência
Hoje ouço um lamento remoto, sob o céu sem luar
Sei que é tua voz atônita, sombria, no ar de outono
Qual não ouvisse mais o vento que trazia os poemas
Que um dia foram teus, mas ora voam outros ares
Sei que teu olhar perdido não pode ver a paisagem
Redescobri em meu peito um novo mar de palavras
Onde teu barco, partido, já não pode mais navegar


domingo, outubro 27

Letras de Outrora

Bem cedo talvez meia noite o poeta empunha o lápis como adaga
Derrama sua dor no papel, ferindo-lhe a carne estéril em grafite
Usa de vestígios de um alfabeto inventado e renomeia a ilusão
Busca esquivar-se de alguma obscurescência aguda da memória
Afinal qual de nós teria um contador de sonhos atado no pulso
 
O ruído do cão roer uma cruz de madeira arranha meus ouvidos
Busco conforto, deito a cabeça em meu travesseiro de chumbo
Enterrado no pesadelo que não amanhece e as portas não abrem
Repousa no ar um rumor espertinado, o cão geme e eu o maldigo
Se a morte é certa e indecifrável já guardei a moeda de Caronte
 
Acordando de um sono profundo, deparo que o outono chegou
Não deixo que se envenene a esperança, um complô, um ataúde
Essas folhas vermelhas, por vezes as pérolas prateadas pelo céu
A hera emaranhada no salgueiro, os graciosos lírios perfumados
Porém, essa nostalgia de desejo vestida do uniforme dos séculos
 
É o mito que o beija flor canta, acende novo fogo, outra paixão
Permito que o astrolábio me guie nas idas e vindas às estrelas
A solidão é um engano, um tipo de feitiço, um simples impulso
Antes de ser um nome verdadeiro que se discerne de estar só
O poeta olha para si mesmo e reconhece que venceu no escuro
 
Tiro o pó das velhas cartas no fundo da gaveta desta dor eterna
Escondo-me entre as ruínas dos antigos gestos, ora congelados
Escreverei uma canção orlada de flores violentas e da palavra sol
Que o delírio da noite que amanhece, ouve, mas não a entende
Uma palavra tão além das letras de agora, verbo, terra e canto
 
 


quarta-feira, outubro 23

Salvação

É de manhã, o sonho se foi, bem-vindo o caos do dia
Vestimos nossa face acolhedora, mesmo em angústia
A caminhar por tortos caminhos errantes e remotos
O que viria como salvação? O amor, a fé, ou o poema
 
Não há lugar na noite para o mutável ímpeto do amor
Não temos tempo para saber tudo, sequer amar tudo
Mal há tempo para fumar um cigarro antes da chuva
Tal qual lágrimas cadentes que ninguém sabe porquê
Insistem saltar entre as pálpebras como ecos da noite
Apesar desse corpo que amanhece em nossos braços
O silêncio é a oração que nossos lábios sabem recitar
 
Pelas madrugadas, juramos fé sobre Seu nome em vão
Vigília que chegamos a cair, n’alguma vez, de joelhos
O que não bastou a Deus saber que estamos tão sós
E dar-nos do pão do divino antes do último aguaceiro
Esperando sentados à sombra dos tamboris a partida
Nos trens negros do crepúsculo a derradeira viagem
 
O verso é o que pode nos mitigar tais palavras rudes
De um compêndio mal escrito nas linhas d’alma rôta
O que vale é nos divorciarmos da mácula do silêncio
Que aumenta tardiamente na noite, de gota em gota
Enquanto a rua se esvazia e pelejamos a desatar o nó
Nó sentido na garganta quando notamos que a morte
Vai acercar-se prematuramente e não podemos evitar
 
Assim constatamos nossa incompetência à eternidade
Fazendo-nos crer distantes de algum fio de salvação
Senão pelo poema, qual o filho que nos carrega nome
Pelo mundo, aguerridamente, dando cor a todo cinza

 


Impossível

Se não me fosse concedido querer-te
Se me fosse impossível te fazer sorrir
Seria a borboleta que pousa no pólen
E espalhar teu perfume onde pousar
 
Se de meus olhos estivesses distante
Se me fosse impossível só te abraçar
Seria beija-flor a segredar ao ouvido
Quem sabe assim para te conquistar
 
Se meu poema se tornar triste e feio
Até me fosse impossível te escrever
Seria o sabiá a te cantar em gorjeio
Entre as árvores o meu amor contar
 
Se não pudesse ter visto teus lábios
E fosse impossível os tocar nos meus
Seria o suspiro que deixam escapar
Quando a lua desponta para te ver
 
Quão frio assim seria o meu coração
Se não lesse em braile o bater do teu

 


Breve manual para amar de verdade


O murmúrio semântico num céu ocre nas tardes de tormenta
Vem tatuar indelevelmente com suas agulhas e tintas minerais
A face do ente amado ausente em nosso coração angustiado
Projeta-a nesse instante contra o gris d’um mundo ultrajante
 
Grava suas marcas, profundos estigmas na essência do existir
O amor vem a nós em conta gotas tentando inundar a solidão
Buscando o feito impossível de apagar a nota amarga da vida
A desconstruir as asas de chumbo e a longitude da distância

No mesmo ato que ordena negros ideogramas e anjos ocultos
O amor ordena a vida ao nosso redor, qual breves lagos de ar
Na clara pretensão de inventar rosas vermelhas sem espinhos
E o ambíguo conceito que podemos doá-las à mulher amada
 
 Quando a verdade se subjaz à crua conveniência do momento
Só o poema, recitado numa voz límpida mantém o equilíbrio
E a harmonia sem veladuras desmemoriais a alterar os fatos
Entregues aos trigais dourados pelo sol e ondulantes ao vento
 
Quando estia e a tarde recobra seu brilho, mínimos rumores
De um retorno tão esperado, vêm nos salvar desse cativeiro
Fazem a construção de uma música clara e aroma de jasmim
De curva sonora com ritmo de coração, sem outro pretexto
 
Concluímos que, de tudo, o que importa é vencer as chuvas
Um amor cotidiano e permanente, não só debaixo dos lençóis
Assim pode cantar o amor nudez conservando sua inocência
E nossas gargantas podem se declarar num sentimento maior

quarta-feira, outubro 16

Ser ou não ser

 

Não sou
a pele que me envolve
Sou mais
do que há de
desejável em mim
Não sou
minha conta no banco
Sou mais
do que há de
indesejável em mim
Não sou
o que a circunstância exige
Sou mais
do que já pude elencar
Não sou
Qualquer estereótipo de TV
Sou mais
do que uma rebeldia imotivada
 
O carma segue na sua marcha, inevitavelmente
Como planejado, resultando nas emblemáticas
E fictas espirais insertas no mundo de infinitos
universos que, refletidos nos espelhos já baços,
Se fundem num crucigrama de desejos alheios.
Pois não somos nem eu, nem tu, nem ninguém

Contradança

Tolo eu que acreditei que a morte era só outra forma de ser
Mas, a terra se abriu e tragou tua imagem para nunca voltar
E sobre o mármore frio, escada de cru silêncio, só uma foto
Que tempo evanescerá como as outras que vi pelo caminho
Acho que levaste contigo o canto dos pássaros da alvorada
É como se uma maré de medo imóvel, tomasse conta de mim
Calando a pena de meus escritos, murando meus dicionários
Pois não descobri uma palavra justa que coubesse no poema
Ou que pudesse aliviar meu coração impávido diante do fim
Agora sei que a morte se assenta, dia a dia em nossos poros
Para nos cortejar sem que possamos presenciar ou impedi-la
Com sua sombra tecida de tempo, em labirintos intangíveis
Sem nomes, deixando para trás todas ilusões e esperanças
Enquanto nos perdemos em detalhes somenos importantes
E nosso tempo de vida incerto esvaindo em gestos inócuos
Questiúnculas sem razões e logo tudo conhecido se desfaz
Tudo que já fomos se evapora, senão uns átomos teimosos
Vivos no armazém da memória num quebra-cabeça infinito
Que vão reiniciar a dança e contradança do que já fomos
E no oblívio azul, esquecidos de tudo, quiçá, fazer melhor



Lua Nova

Musa onde te escondes, o dia parte já triste sem ti
O sol se esconde do dia num horizonte em chamas
Divide o céu entre brisa tépida e vento frio do sul
Eu escondo parte de mim em teu corpo em chamas
Qual uma rubra linha divisória entre o bem e o mal
A lua desponta prata sob um negro toldo estrelado
Recortado pelas montanhas de um verde indistinto
No teu olhar sereno, o que restou do dia de verão
Teu perfil à janela, recorta a noite em luz e beleza
De seios qual peras és o jardim do éden renascido
Teu torso esguio de palmeira, um paraíso tropical
No quadril violão reside a música que me estimula
Meu novo mundo, onde cintila uma nova estação
De tanta vida e luz, se invejam primavera e verão
Quedo-me de joelhos ante teus lábios encarnados
A nudez de teu corpo, é igreja de minha devoção
Na liturgia das tuas doces palavras, és meu poema
Mar fulgurante de vida, em tuas praias a repousar
Na sombra de tua gruta apuro meu suave paladar
Enquanto não voltas todas noites são de lua nova
Mostra-te amada e devolve o brilho a este mundo