domingo, outubro 27

Letras de Outrora

Bem cedo talvez meia noite o poeta empunha o lápis como adaga
Derrama sua dor no papel, ferindo-lhe a carne estéril em grafite
Usa de vestígios de um alfabeto inventado e renomeia a ilusão
Busca esquivar-se de alguma obscurescência aguda da memória
Afinal qual de nós teria um contador de sonhos atado no pulso
 
O ruído do cão roer uma cruz de madeira arranha meus ouvidos
Busco conforto, deito a cabeça em meu travesseiro de chumbo
Enterrado no pesadelo que não amanhece e as portas não abrem
Repousa no ar um rumor espertinado, o cão geme e eu o maldigo
Se a morte é certa e indecifrável já guardei a moeda de Caronte
 
Acordando de um sono profundo, deparo que o outono chegou
Não deixo que se envenene a esperança, um complô, um ataúde
Essas folhas vermelhas, por vezes as pérolas prateadas pelo céu
A hera emaranhada no salgueiro, os graciosos lírios perfumados
Porém, essa nostalgia de desejo vestida do uniforme dos séculos
 
É o mito que o beija flor canta, acende novo fogo, outra paixão
Permito que o astrolábio me guie nas idas e vindas às estrelas
A solidão é um engano, um tipo de feitiço, um simples impulso
Antes de ser um nome verdadeiro que se discerne de estar só
O poeta olha para si mesmo e reconhece que venceu no escuro
 
Tiro o pó das velhas cartas no fundo da gaveta desta dor eterna
Escondo-me entre as ruínas dos antigos gestos, ora congelados
Escreverei uma canção orlada de flores violentas e da palavra sol
Que o delírio da noite que amanhece, ouve, mas não a entende
Uma palavra tão além das letras de agora, verbo, terra e canto
 
 


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