terça-feira, agosto 28

Lamentos


A lua desliza suavemente descrevendo seu arco no véu da noite
Olho a imaginar o que haveria no lado em permanente penumbra
Um mar de respostas incipientes jorra pelas janelas entreabertas
O ser que herda o inferno também herda coragem no seu âmago
É um sentimento complexo que diz sobre ter sonhos inacabados
Cheios do mistério que se multiplica nas noites estéreis de sono
Impregnadas de lamentos. Qual resposta que o sonho contempla
Quando se amanhece com uma sensação de aconchego e alegria
Ou quando o dia aporta no grito ferido de angústia na garganta

Pouco arranjamos saber sobre as verdades da psiquê sonhadora
Ressoa a dúvida se a vida poderia ter-nos doado mais de ternura
A ternura que havia nos acenos de alguém que se afastou cedo
Que partiu tão definitiva levando as alegrias e deixando a culpa
Que o tempo inexorável não amenizou e ora, ao invés, só fustiga
A tarde cai, ao brilho carmesim do sol, fluindo a luz da verdade
Invade e cora nosso rosto por nossos sentimentos insuficientes
Que nos consomem e ruem se estagnamos os desejos para saber
As razões porque o amor se move de inopino ao som dos poemas

No banco da praça, sob o arvoredo, olvido de algo arrependido
Algo que a memória trai, sob uma tarja da luz do luar, contudo
Eivado de dor e espanto ouvindo ao longe a rugir a tempestade
E o céu se esconde sob uma aura triste diante do pesado fardo
Enquanto a chuva salpica as folhas do salgueiro, pelas veredas
Vem no peito uma sensação de que devia ter criado mais raízes
Quando ainda cria que uma nova emoção perdida ser-me-ia fatal
Agora o tempo já vai avançado nesta jornada e refuto a piedade
Levo eu mesmo minhas cicatrizes, seja para o bem ou para o mal

Meu orgulho não aceita a compaixão e sorverei do fel que me é
servido sem sequer questionar os ensejos indeléveis do destino.

sábado, agosto 18

Quimeras


É novamente madrugada e o frio invernal desce das montanhas
Meu corpo estremece, mas nem é pelos rigores da temperatura
É pela falta de alento, é a esperança que já agonizou há tempos
Pela alma pendurada infinita nessas insônias que me assombram

Apesar dos enganos eu pude conservar a capacidade de sonhar
Arduamente repaginando milhares de constelações de quimeras
O existir não traz o mapa, não esse de tantas tentativas falidas
Não diz como alcançar o cume antes que só restem os vestígios

Mas ainda assim, sorrio ao recordar das tolas paixões de chuva
Até o tempo que nunca se comportou diante das tempestades
Cala na falta de rima destes versos cheios de curvas e ladeiras
Invenção que alguém deixou traçada nas nervuras dos lençóis

A lua chega de um rompante como uma deusa de prata e ilusão
Cá em baixo, nas esquinas, as flores de plástico desbotam nuas
Sem perfume, revivem apenas pela graça de uma alma dadivosa
Enquanto suplicam por alforria, na noite toca um adágio lento

Há dentro de mim germens de poemas que invocam por nascer
Ora feitos de retratos das mais singelas passagens de uma vida
Minh’alma punge quando se rememora do som dos cata-ventos
Do sino da igreja afastada, do alvoroço das crianças na praça

Ora como o vento bravio que dilacera o peito nas lembranças
De gritos tão remotos que chegam em negrito e em caixa alta
E tudo se mistura, as palavras incendeiam como lança-chamas
Para gravar sua dor coberta de musgo nas pedras do caminho

Levanto-me, espano levemente a poeira do tempo de escrever
Olhos ao relógio, para saber a hora e se sobrevivi ao vendaval
Agora que o pulsar frenético das vozes noturnas vai calando
Sigo noite adentro delineando teu olhar profundo e distante

Nos passos ébrios destes versos, no ventre severo das palavras
Ponho ponto no fim da linha para que não seja apenas saudade.

quinta-feira, agosto 16

À Deriva


Foi por essas noites tão sombrias, ao vento, silêncio infinito
Pensei nas cicatrizes que deixou o passado e quantas deixei
Nesse desalento caótico, lamento as feridas ainda expostas
De todas ilusões que se perderam na incógnita ou no olvido
Pressupõe-se que nossos passos já não mais deixem pegadas
Na pedra de sacrifícios, a busca do divino revela o profano
Desse jeito torto de ser nascem poemas tanto tormentosos
Só por ser capaz de crer no amor por razões além da razão
Pois na lágrima que desce a face não estão todas respostas
O querer não pode ser inócuo ou frio. Precisa ser emoção
Não mero vício, um desejo vão de não estar fisicamente só
Ou o que se chama fé, assemelha a uma descrença infinita
Como nau à deriva que, há tanto tempo, se perdeu do cais

Parado diante do horizonte, por vezes assim eu me indago
Para aonde vais para querer cruzar águas tão tormentosas
Porque pranteias dessa dor amarga que parece não ter fim
O vento sopra morno lá da serra como alento aos errantes
Com o olhar perdido, em descompasso, numa luta desigual
Assim navego ao sul nesse mar de lágrimas duras e imensas
O sonho é bom, nele a esperança se farta de coragem viva
Mas a realidade é cruel e desleal e a esperança só miragem
Deixo o cais para que o destino realize desejos improváveis
Parto, mas sem levar na boca o gosto amargo da despedida
Nunca mais serei tronco, imóvel, onde se amarra os barcos
Nem serei a pessoa a qual o carinho deu lugar à indiferença
Cuja pele se esqueceu do toque e que acredita que o amor
Seja só uma palavra escrita num livro velho que ninguém lê