terça-feira, agosto 30

Sobrevivendo

Entusiasmado pela cerveja, numa bodega qualquer
Imaginarás o amor tal a nuvem cinza que ali flutua
Uma fumaça gris de gente tão anônima quão triste
Um espelho humano retratado em sua face animal
Sem nenhum parentesco com a luz, antes agonia

Mas o verdadeiro amor é o que doma a intempérie
O sono e o grito que nascem do avanço do tempo
Doa a corações subjugados o fogo que os aquece
A vida, passo a passo, acaba por escrever por nós
Pois vamos nos reinventado, loucos sobreviventes

O amor tem o gosto salobro que só água de poço
Tem aquele mesmo toque macio da lã da casimira
Com que nos trajamos para sair em dias da chuva
Nos esquivando do ácido dos dias a cada semana
Quando acolhemos fragmentos, recriando o verso

Saiba que os amores também brilham na periferia
Que pétalas de flor, são tão pétalas nos subúrbios
Tal nas coberturas garbosas, plácidas e luminosas
Também se veem detritos agônicos do poema cru
Que aponta a um novo senso a cada sol dos anos

Em um infinito frisson de palavras jamais escritas
Um horizonte sem horizonte transforma o poema
Esse animal solitário de todas as ilusões perdidas
Sublimará tão louca paixão e desejo em cada linha
Causando a nítida sensação que a vida até existe

O poeta passeará a certeza do amor a cada ocaso
Para ir na última madrugada, nos braços da morte


sexta-feira, agosto 26

O Grito

Nem sei quem escolheu que minha voz traria este grito

Que minha pena seria a arma que empunho no espírito

Nunca por silêncio, antes pela azáfama para o espanto

De alguns homens entre tantos outros com meu canto

Fazendo-me ensurdecido, portador d’um grito perdido

Quase já não me reconheço diante do espelho partido

Quase esqueci-me que é o vento que revolve as folhas

Entanto aqui dentro a vida revolve as nossas escolhas

Olho a cidade, atento às luzes, ao seu acende e apaga

Assim constato que a dualidade é mais que ideia vaga

Aos pares é que buscam equilíbrios forçados na terra

Alto e baixo, branco e preto, são pretextos de guerra

Dizem que as coisas se dividem só em duas, bem e mal

O grito que trouxe diz que não, que o mundo é plural

Pois bem que olhem, não serão capazes de me devorar

Haverá beijos intocados sob o orvalho secreto pelo ar

Pois se o poema é fogo invisível as palavras são brasas

Ao fim, de todo vestígio, serei mais poema que cinzas



sábado, agosto 20

O mundo em 7 dias

 Dia um: Constatação

A vida é um caminho justo entre as curvas do tempo
Estas que nós, tolamente, ponderamos que são retas
Quais restamos emaranhados em geometrias insólitas
Cegos tateando pela luz que não podemos encontrar
Em meio a lamentos ímpios ou silêncios desenlaçados
Lápides onde rareiam nossas mais ternas lembranças
São muitos desalentos vitalícios, albergados na alma
Até reconhecermos que estamos fadados a essa dor
Cujas razões nunca vamos confessar nos faz justiça


Dia dois: Encontro

As estradas a caminhar se mostram de forma inusitada
Nada era igual naquele dia tão desigual entre desiguais
Seus cabelos dourados pendiam em cachos nos ombros
Seus vividos olhos de esmeralda, limitaram o meu olhar
Ela caminhava quase a flutuar, seus gestos ondulantes
E sua voz angelical. Não havia como não me apaixonar
Foi nascida paixão, mas foi mesmo a semente do divino
Em terra fértil, ela germinou e venceu todos os limites
Ocupou todos os sonhos, ocupou o tempo e o espaço


Dia Três: Tempo

Ah, tempo breve! Uma vez, dono das memórias gentis
Outra vez, senhor desse desassossego cru, tão hostil
Que consome ilusões, despe-nos de tão caras imagens
Ergue prantos antes calados e rumores encurralados
Conspirando meio à neblina na solidão da madrugada
Deixando na estória da noite só as saudades arredias
O coração remanesce na hipnose do oblívio ilimitado
Como anteparas para esconder-se essa dor contumaz
Mas, cicatrizes perenes obstam negar tão acre sofrer


Dia Quatro: Partida

Mas a carinhosa lembrança dessa esperança irretratável
Jaz entre as touceiras dos espinhos na beira do caminho
Eu, fora embriagado de tanto amor nem sinto o perfume
Que antes inundava todos os cantos e horas, noite e dia
De toda vibração restou um fado nostálgico agonizante
Só há distância, desejos mendicantes e um peito faminto
A aurora na bruma estéril mirra o último sonho redentor
Todo um universo quântico e a mim cabe apenas silêncio
A doçura da brisa ficou fora, quando a porta se fechou


Dia Cinco: Novo Tempo

Quis enfrascar os momentos que vivi no topo do mundo
Os lençóis matutinos desalinhados qual prova da paixão
Mas descobri o que muitos sabem há tantas existências
É o tempo que abateu flores, o mesmo que trará frutas
Estas tão melodiosas e doces, quão aquelas foram belas
A madrugada serena exala novos perfumes, quais beijos
Levam-me a escrevinhar novos versos não mais reclusos
Não mais soturnos nem agonizantes, porém revigorados
Regendo a orquestra de sentimentos, irrequieta paixão

Dia Seis: Urgência

Insensata dor, tu ó dor, porque me querias emudecido?
Solidão, lamentos, ódios e espadas para nada nos urgem
Beijos e risos, correr pela claridade da manhã é urgente
O amor é a urgência, como é o barco a quem vai no mar
Assim qual saborear o som dos rios e das quedas d’água
Lá onde reside a antítese do silêncio que oprime o peito
Saber que a beleza da rosa afronta a frieza dos adeuses
E nossos sonhos quase infantis seguem fartos de afetos
O amor é aconchegar no nosso interior um novo frescor


Dia Sete: Reencontro

Ela tem os olhos mansos, os cabelos são quais os trigais
Viemos de eras pluviosas torrenciais, ora cumpre estiar
Sua voz é mansa, o olhar intenso mira minh’alma exilada
Sei que ainda tenho lamentos aonde quero mais sonhos
Mas reaprendi a voar, meu pouso é seguro em seu peito
Vou ao encontro da vida no sopro quente da primavera
Para além das portas de quaisquer desalentos vitalícios
Abandono a busca pelas respostas inadiáveis e incertas
Louco, ignoro o destino, o que faço nas linhas do verso