sexta-feira, maio 31

Lúcida Aurora


Na lucidez da aurora, a mãe de todos os sonhos e ilusões
Uma chamada ao telefone me afasta da trégua do silêncio
Uma voz suave e quente alegra o poema em lenta gestação
A luz do abajur revela todo o branco imaculado do papel
E as palavras saltam ágeis e imponentes à folha sem linhas
Cobra-me a atenção o relógio morno a serviço de Morfeu
A hora avança sem rédea nos ponteiros úmidos de solidão
Mas o poeta verbaliza na tempestade seu grito de rebeldia
Deixando na boca um gosto de caramelo de toda a utopia
Que se seja possível criar sob as estrelas apagadas lá fora
Encobertas pelas nuvens que deitam a chuva noite afora
Elas não são nuvens de algodão doce nem de carneirinhos
E o que isso importa, se vamos a cavalgar o golfinho alado
A musa de belo busto e peito arfante, meigamente assiste
Suspira ao ar encolerizado da natureza troando insistente
O poeta singra na atmosfera entre as vírgulas dos trovões
O sentimento, tal uma entidade, toma a direção da caneta
Como que estivesse embriagado pela vontade de escrever
Pintando este quadro desnudo pela imaginação do sonhar

terça-feira, maio 28

Honestidade


Tudo que se pode chamar de ternura, ficou no passado
Sob um céu de vinho tinto cor de veludo na noite turva
Ah, é tudo tão longe! É uma estrada só de acumular pó
Sobre minha história de ave de arribação mal explicada
Pela insônia tresnoitada dos pedaços de vida não vivida

A aurora rescende a rostos cheirando água de colônia
Lembrança de tantas ausências, de minutos esquecidos
A taça com um resto de vinho permanece no aparador
Simbolizando tudo aquilo que poderia ser e se esqueceu
Ou que a dor antiga confundiu fazendo não mais desejar

Onde foram os sonhos em que deitamos nossa esperança
Quais desvios que aceitamos no caminho sem o perceber
Sob quantas camadas secretas que se oculta a felicidade
Haverá alguma promessa que um dia se fará para cumprir
Um dia deixaremos de dizer coisas que podem machucar?

Saiba que depositei minha franca confiança no que dizias
Mas foram só mentiras que usaste apenas para me afastar
Porém nós sabemos que mentir trará um preço a ser pago
E eu devo te contar que esse preço é sempre alto demais
Queria te fazer feliz, mas fostes escravizada pela solidão

Sou poeta e todo poeta pode ter algo de triste, mas nunca infeliz
Morre-se à noite, se renasce na intransferível dimensão da manhã


sexta-feira, maio 24

Rumor



O rumor da água sugere o riacho não visto entre folhas trêmulas
Sobre a relva eclodem pequenas flores multicores tão desiguais
Os pássaros reúnem-se em grupos com seu murmúrio incessante
Logo anoitecerá e as aves se aninharão silentes nesse santuário
O negro véu se abrirá sob o azul dispondo a chegada das estelas
Como contas brilhantes de uma negra grinalda a celebrar a noite
O crepúsculo acende essa imagem em minha mente e pensamento
As fugazes palavras que fazem o verso, tal elas vêm, qual elas vão
Duram o tempo para que se entoem os segredos ao pé do ouvido
São grata memória de antigas juras tão cálidas ditas ao anoitecer
Tendo como fundo as montanhas que pareciam esculturas vivas
De vida invisível e nem por isso menos presente a todos sentidos
As árvores e suas raízes frias assemelham-se a sentinelas soberbas
Silenciosas, com sua silhueta a recortar o mar de estrelas no céu
Na branda atmosfera dessa contemplação que ao certo era sonho
Ao mesmo tempo que a lua derramava ao chão toda luz de prata
Sinto no paradoxo de minha solidão, uma presença deslumbrante
Seus cabelos vão quase a tocar o chão ao se balançar distraída
No balanço suspenso nos galhos míticos de majestosos carvalhos
Mesmo com meu silêncio, ela se volta e nossos olhares se cruzam
Uma leve brisa sopra, mas não minimizou o rubor de nossas faces
Nem desfez a surpresa de nos conhecermos, sem nunca nos visto
Ela era tão bela e a noite, nas horas que vão a meio, o seu templo
Sinto o pranto angustiado dessa deusa em seu coração apertado
Emudecido nos lábios solitários que não escolheram dizer adeus
Mas que a fútil realidade dos dias assim a obrigou a duras penas
Sua doce imagem virginal tocou meu coração no mesmo instante
Sorri-lhe com toda minha compaixão e seu olhar agradeceu feliz
Ouço uma melodia que se perfaz no ar e fala de amores perdidos
Assim, lhe prometi que minha voz sempre irá cantar a sua canção
A leve figura desaparece entre as árvores sem mover a folhagem
Deixando a fluir no ar o perfume envolvente das noites de verão
Retomo meu caminho, imaginando se um dia voltaremos a nos ver