terça-feira, abril 30

Mea Culpa



O relógio morno da noite revela suspiros nas alamedas da vida
Estou farto de tantos reveses. O que ainda há para aprender?
Planto flores, mas só colho gemidos, folhas secas, novas dores
Mas, mea culpa, devo ser eu que faço tudo errado, bem assim
Pode ser que estivesse dentro de mim a tempestade reprimida

O vento encolerizado sacode as ruas em espanto ao meu redor
As nuvens de algodão deram lugar ao céu de um cinza furioso
As paisagens alegres do campo são estradas lavadas de solidão
Nem sei mais a dimensão de minhas feridas que não cicatrizam
Talvez nem importe, todavia, sinto-me perdido nessa imensidão

Há certos dias de parca inspiração, que as palavras vêm soltas
Como esmolas, trocados que se vertem ao acaso para o poeta
E o verso soa como corpo sem alma, breve, um ponto sem final
Igual o caminho que se caminha sem ter razão, ou onde chegar
São dias de colheita magra, de noites sem luar, flecha sem alvo

O peso do abismo que me impede de voar soa qual grito ceifado
Que estampa o medo nos olhos de quem nunca aprendeu sonhar


 

sexta-feira, abril 26

Cenários


Da porta dos fundos, olho a chuva que cai e as lembranças vêm
Daqui não escuto os automóveis, frenéticos, a passar pelas ruas
Vejo o leve vapor que se desprende dos telhados sem seus gatos
Tudo se ilumina e não estou mais ali, vou revisitar outro cenário
Algumas memórias doem como chicotes na pele no escuro do dia
As cortinas ao vento da janela distante é o fantasma que acena
Para nos lembrar da temporalidade de nossa passagem por aqui
Deixo-me levar pelo perfume das flores, na terra recém-molhada
Sigo por caminhos tortuosos como o peregrino em país estranho
Que partiu para descortinar os mistérios contados ao pôr-do-sol
Os últimos raios do dia, refletem nas faces e seus cílios de metal
O poeta em sua azáfama de alquimista, constrói do éter o poema
As sombras caminham entre as árvores, encobertas pelo nevoeiro
Em meio a penumbra, ouve-se em coral, remotos sorrisos infantis
Brota no peito uma nostalgia: sou eu ontem entre esses cenários
À garota de olhos cinza, ofertei-lhe a mão para evitar os espinhos
Fomos assistir o pôr-do-sol, sentados numa pedra à beira do vale
Vimos juntos chegar a noite e, sob o luar, tocaram nossa canção
Caminhamos lado a lado e levamos o som da poesia no coração
Entre as estrelas ofertei-lhe uma flor e ela logo sumiu na bruma
Pois, de volta ao real. Lá na frente as pessoas apressadas se vão
Seus calçados polidos e brincos de pérola passando de lá para cá
Nem se dão conta da minha presença, silencioso a lhes observar
A mim, apenas resta pensar no outro eu que vive dentro de mim