quinta-feira, setembro 30

As Marcas do Tempo

 A noite desaba sobre a terra e, no silêncio, o pio da coruja a anuncia

Nessas horas de sombra percebo que o tempo deixou marcas em mim

Reconheço que cada vez os dias se ausentam mais velozes e insípidos

Com menos espaço a lembranças nas horas saqueadas de meu futuro

Não mais tenho escutado as histórias que o mar segredou às conchas

Para, depois, depositá-las com suas espumas sobre as areias do existir

 

Sendo invisível o tempo é a ausência que avermelha a folha do bordo

O tempo não se soma, antes subtrai a si próprio pelas veredas da vida

Sei que assim a morte se faz mais próxima a inaugurar novo princípio

Atenção a quê espero manter declinando para seguir neste solilóquio

Que revela toda a solidão do poeta destacada dia a dia no calendário

Em aviar estratagemas para lidar com essas almas cruéis e sorridentes

 

Busquei conduzir meus dias, entre caminhos com portas sem trancas

Onde todo segredo tem limites felizes e da estrada se vê o horizonte

Não levei minha vida à deriva mesmo passando por paisagens difíceis

Por silêncios vorazes nas horas que as sombras se debruçam na terra

Muitos se afastaram e o tempo ensinou que foi mais lucro que perda

Jamais forjei o aço dos espelhos que me refletem, com o metal do vil

 

De outro lado, não me seduz a ilusão de merecer louros da perfeição

Nem tampouco a falsa modéstia de negar aquilo que lutei a aprender

O tempo revelou que devemos ignorar os sorrisos oblíquos e amargos

Bem como olvidar as palavras que ocultam aqueles que nos preterem

Longe de ser despedida, este poema só constata as marcas do tempo

O fogo vivo que aflige o fraco, mas coroa o que na luta restou em pé

 

O tempo marca a todos: uns veem cicatrizes, a outros são só medalhas

segunda-feira, setembro 27

Dias Melhores

 Dia após dia as palavras feitas de sangue e ouro nos brindam

Os poemas já nascem tristes como lápides de ausentes heróis

O silêncio abissal revela em notas musicais as folhas a caírem

Batidas pelas gotas da chuva que caem no campo devastado

O vento leste que sopra traz o odor de pétalas já ressecadas

Memórias das tardes de incêndio interior às margens do mar

Mais uma sílaba, mais um gesto e o pássaro voa longe demais

Alcança aquela nuvem indolente, de água lapidada a flutuar

Ainda tenho a garganta seca, quanto o coração me restará?

Sei que esse medo é em vão, apenas vivos é que sentem sede

O sabiá caiu da antena onde cantava, restou um sabor de fel

Será que o paraíso existe para todos, digo, igual sorte ao fim

Há horas em que minha mente dispersa, sim afinal reconheço

Foram tantos pores do sol e tantas esperas e noites de chuva

Que nem mais sei dizer como fazer para resgatar a lembrança

De onde vem a certeza, clara, gentil, que dias melhores virão

Estas palavras cansadas, eu sei, cobram um sabor de enxofre

sábado, setembro 25

Primavera

 Muito tempo aguardei atrás da porta e as manhãs eram cinzas

As correntes enferrujadas das prisões são quebradas pelo Sol

O guardião de todas as chaves, abriu as persianas dos sonhos

Então vi a flor mais exótica no canteiro desta existência vazia

Ando extasiado pela estrada e espero os horizontes mudarem

De agrestes caminhos orlados de espinhos a verdes gramados

Escuto os coros antigos que cantam suaves canções de ninar

Sou peregrino nesta vida que ama ouvir o metal do sino tocar

Eu que enquanto poeta julguei ser rei, mas era só o jardineiro

E ser jardineiro é ser rei e ser poeta quando se plantam flores

Breve a atmosfera se perfumará suavemente, mas com esmero

Brindando pela volta das chuvas que o calendário diz que sim

Mas, os ventos lilases do inverno dizem ao flautista ainda não

A roda dos ventos sorri lentamente e faz as orquídeas dançar

Então faço bordar versos de paixão para essa musa imaginária

Criada na maciez da pétala da rosa e cor dos amores perfeitos

Minha eleita de corpo perfeito, o rosto lindo e olhos risonhos

Enfim chegada, fruto desta escrita, que emergiu deste poema

Do doce e do amargo conhecemos, mas juntos seremos um sol

Minha Helena, nenhuma musa se iguala a ti agora que te achei

Teu poeta vem partilhar esta poesia que chamei de primavera

 

 

quarta-feira, setembro 15

A aposta

 

No silêncio da noite vem a sina dos amantes

Derramada num céu cor chumbo de tristeza

O tempo evanesce o que a memória guardou

Esse amor tão cristalino, amor de esperança

Eu apostei que viveria por toda a eternidade

Quiçá seja obra do destino e o amor morreu

Mas a noite adianta e a manhã vem vitoriosa

Abriga-me sob suas asas de um azul intocado

Ornado de duas nuvens brancas desgarradas

Ouço frases profundas que buscam consolar

Mas são só palavras despejadas dessas bocas

Essas palavras sem cor, da espera inesperada

Em troca de tão ansiado beijo que nunca veio

Deitando o nome da bela amada, letra a letra

Nas palavras tocadas por razões improváveis

No frio do mármore a esperança desmantela

A poesia é amor deitado no desdém do papel

Onde se apostou pela vida, contra o destino

A última cartada contra a dor o azul vencerá

Renovação

Eis que o inverno já se foi e o verde das colinas revive

Ouço, antes da noite, um último lamento dos pássaros

A chamar nas planuras de encontro ao rumor marinho

Minha mão traça no ar linhas de caminhos imaginários

Onde correm, cinzas, os lobos sob o troar dos trovões

No ar persiste o cheiro de terra molhada, olor de vida

Movo os olhos e lembro que dissestes foi tudo em vão

Mas cada gesto, cada expressão desta face eram teus

Enquanto os dias floriam violetas por jardins distantes

Por tuas escolhas, a varanda de tua casa já resta vazia

Desnudada entre as bandeirolas de uma festa passada

Que ficou no dia de ontem, orlada apenas de sombras

Ficou no passado o dia que andávamos de mãos dadas

E se a ti nada existiu, a mim foi o final de tua história

Mas nesta idade não se permite que faça isso invisível

Posto que as lembranças não dão-se a ser abandonadas

Elas me são tão só lembranças e a vida segue renovada

Nas estações da minha vida, já tem tempo é primavera

E, meu coração peregrino encontrou afinal seu abrigo

Seu lugar no mirante, na derradeira luz, a olhar o mar