sexta-feira, março 31

Paladino



O que se fez daquele garoto loiro visto a singrar num barco ébrio
Embarcado sem saída numa existência trágica, quiçá um exilado
Quiçá seduzido por antigas vozes imêmores nas voltas do tempo
Paladino das palavras a avançar pelas noites desenhando poemas
O poeta a traduzir e inventar alquimias coloridas do vocabulário
Sem ter conta do tempo passado a quem é tão-só uma tribulação
No mister de agregar letras feitas de anseios qual cativar estrelas
Para romper os desvãos do silêncio nas primevas tardes outonais
O caos que cala os ouvidos, restando apenas vozes em monólogo
Vejo os egos do cotidiano a exibir sua linda amante e não a amam
Nem ao menos lhe fazem amor pois vivem de apologias e delírios
O poeta não fabrica versos, é antes artesão a burilar os vocábulos
Nesse trato artesanal alforria os sonhos aprisionados nas mentes
Na varanda, à cadeira de balanço a poesia está além do horizonte
Para transmutar em luz o conceito de infinito e segui-la ao longe
Sobre a imensidão do mar e sentir a saudade do que nunca se viu
Entre a manhã que já se avizinha e a noite que sussurra mistérios
Há um hiato no tempo, um som de violino, horas se tardam advir
A aurora em confessa delicadeza vai testemunhar das entrelinhas
O dever que, ainda na sombra do vazio, ousemos adentrar o eterno

sexta-feira, março 17

O Labitinto



O que fazer se por trás do teu melhor sorriso impostado
Nessa armadura fria em que te escondes, nada se aquieta
Esse aperto no peito, ou o nó na garganta que não desfaz

O que fazer do alto das tuas fidúcias se quando dás conta
A tempestade se foi, mas restou o som amargo do trovão
Porque talhamos signos para perpetuar no negro mármore

Tudo parece nos desafiar e abdicamos da aptidão de sentir
Sempre lutaremos contra os sentimentos que nos habitam
Então teremos apenas abismos esmagadores à nossa volta

Nas estradas da vida, retas ou sinuosas, na ânsia de chegar
Quando nada nos realiza na tentativa de permanecer em pé
Nos vemos diante de um labirinto de paredes negras e altas

Na praça central as palavras encenam um estranho festival
Singelas, entremeiam o silêncio e murmúrio antes ocultado
Atrás das máscaras desse cerimonial, faces se decompõem

Lúcidas. Na rotina angustiante, somos prisioneiros na alma
Não distinguimos que nos está incrustado o anjo e o pecado
O paradoxo de trair para ser fiel, estranho mundo de formas

Os sentimentos humanos têm parâmetro num autorretrato
Algo mais singular ativa o disparador e é tão logo rejeitado
Nos campos desnudos já não brilha o amarelo dos girassóis

Como me ouvir, creio, se me ouvir é a desfiguração do ego
No sol do meio-dia, sob as farsas e intrigas, é só caricatura
A fórmula esquizofrênica mimetiza uma abissal voz alheia

Como crianças confusas pela sua ingenuidade, usualmente
Procuramos a resposta sempre nos outros, sem a encontrar
Quando é obvio que as respostas e perguntas estão em nós

terça-feira, março 7

Memórias Gramaticais



Cai a chuva cotidiana no final de tarde, os transeuntes vão e vem
Correm a se esquivar das gotas brutais ocupando ruas e calçadas
São sombras sob a chuva enquanto traço estas linhas desabridas
Coletadas dentre a mais crua realidade de memórias gramaticais
Refeitas da antologia mera de palavras ditas quase em desespero
Caídas de uma boca que se abre mais como gesto que como grito
E não há revelação a transcendermos, no fim só nos resta soluçar
Abatidos seguimos adiante carregando uma réstia de lembranças
Parcos frutos de uma consciência degredada, uma ilusão de ótica
Levante a voz, não sejamos um eco hesitante do que fomos ontem
Até exaustos, impende ter em mente muito mais que conjecturas
A noite se adensa, as nuvens se desfazem no reflexo prata do luar
A luz flava do poste se dissipa em sussurros sobre o negro asfalto
O letreiro em neon nos dá um infido conceito de vã modernidade
Continuamos presos em murmúrios às máscaras da conveniência
No espelho da verdade somos só fantasmas em nosso próprio eu
Aguardando que desça sobre nós o mármore infinito e o silêncio
À sombra da velha árvore há ecos áridos trespassados pelo tempo
Apesar do voo dos pássaros e das nuvens a alma não se fez serena
O rosto refletido nas côdeas da aurora mostra uma efígie infernal
Na infinita ousadia de aspirar transcender à inefável imortalidade
Traz o signo de ícones ancestrais e lhe pulsa um indefesso coração