quinta-feira, junho 23

Pesadelo



Novo dia amanhece, olho para fora, estou só num canto na cidade
Aqui nada é meu, senão a dor dessa solidão tatuada negra na alma
O sol arde crestando as ruas e os pássaros se aninham nas sombras
Na minha vida, não há sol ou azuis celestes, nem pássaros a cantar
Em mim o céu é mal-humorado a trovejar e chover entre negrumes
O amanhecer chega, mas não há ninguém nem há nada a florescer
O brilho e luz das estrelas já me deixaram bem antes da aurora gris
Cruelmente despejado do sonho que ousei esperanças impossíveis
Os velhos prédios ao redor parecem saudar outro dia de existência
Não a minha, pois cobiço que uma morte breve me salve da solidão
Imagino histórias de outros tempos, tempos esquecidos de amores
Em que querer estar ao lado de quem se ama vinha antes que tudo
Vivo num tempo errado de telhados e de paredes cheias de musgo
O amor que eu queria era doce e meigo, um anjo chegado dos céus
Na minha noite já não há anjos apenas o movimento sombrio do ar
E o profundo silêncio só quebrado pelo rumor ácido dos caminhões
No meu céu não há lua, restou um vazio de chumbo de idas ilusões
Minha mente é um templo de metamorfoses onde os corvos voam
Uma ausência presente que exige ser sentida sem nunca aparecer
Nada há sob o céu senão o canto angustiado de um galo sem hora
Os beijos que sonhei, ora são gritos de aflição no peito em chamas
A lutar contra a senhora do destino perseguindo-me infinitamente
Trazendo seu aperto de mão sinistro e uma paralisante luz doentia
Mas finalmente acordo, um tanto exaurido por esse duro pesadelo
E clamo a plenos pulmões, sim há estrelas, rios, florestas, perfumes
Há a cidade, sons, há você! Senhora morte não será ainda desta vez
Há neste meu peito e mente indomáveis muita vida para ser vivida

sexta-feira, junho 3

Equação Vespertina



Sou o pássaro que marca os céus contra o cinza da tarde
No voo súbito que provém de recriar o traçado da fábula
Compõe suas asas fugitivas para desfazer o caos poético
Na caça da resposta para o conflito surdo dos contrários

Sou a sombra peregrina e muda, cativa do contorno real
Na dobra das palavras omitidas nessa realidade subjetiva
A ventania esboçada na rota oposta do tempo vespertino
O núcleo indevassável da essência emaranhada do poema

Sou a múltipla alquimia da razão entre o fogo e o carvão
Na condição líquida de unidade da pedra anterior ao ser
Por todo o percurso que transmuta a fórmula do existir
Como ponto oculto de sabedoria de cada mente criatura

Sou um surto de realidade a curvar-se ao tempo natural
A verdade só se observa ao abandonar a ilusão da razão
A luz é matriz no labirinto dos versos, antídoto em cor
‘Felix qui portuit rerum cognoscere causas’ diz Virgílio (*)



(*) Versículo 490 do Livro 2 do Georgicas (ano 29 a.C.),
do poeta latino Virgílio (70 a 19 a.C.) e pode ser tra-
duzido para "Feliz daquele que é capaz de conhecer
a causa das coisas".