quinta-feira, agosto 31

Vida que segue

Chegaste até mim com a brusca leveza da garoa

De gotículas que, oblíquas, flutuam aos ventos

E minha demência dança ao orvalho da planície

Sem almejar nenhum sonho de glória impossível

É nesse delicado castigo sobre relvas verdejosas

Que convido tua cálida nudez cristal para a dança

Olvidarmos as lágrimas de medo, dor e urgência

E numa explosão de cores, bailarmos pelo campo

Qual sorte que se lança, a provocar lembranças

Decifrei na tua boca as equações do verbo beijar

Luzes enfeitiçadas de tremeluzentes pirilampos

A iluminarem as curvas de teu corpo serpentino

Na paisagem coberta por nuvens em movimento

Os teus seios bem talhados me apontam o rumo

Mas se te fores será vez do verão partir contigo

E no frio do inverno me suicidar no pensamento

Apesar de tudo, tomado de imperdoável alegria

Sabendo que vais e voltas, qual a brisa da tarde

Permita-me, na real, vou preferir seguir vivendo

segunda-feira, agosto 28

Pouco a pouco

Saíste aos poucos d’minha vida qual árvore que seca

Foste retirando a tua presença, dia a dia, lentamente

Por assim, talvez acreditar eu não pudesse perceber

Mas o vento trouxe a dor de uma despedida pertinaz

Distâncias e silêncios que imprudentemente ressoam

Eu sonhava acordado construir essa vida em comum

Abrigar-te da chuva e da umidade que dói nos ossos

Mas me contagiaste com a umidade de tuas lágrimas

E o guarda-chuva que deixaste, já nem importa mais

Que pena que tu foste, sem saber do tanto que ficou

São tantos os muros em que escrevi a nossa história

Restam tantos, vazios, onde quis escrever teu nome

Para que nessa absurda partida houvesse algo trivial

Não há voltar atrás, não importa se é cedo ou tarde

Não importa se a brisa da manhã ainda sopra fresca

Nem os perfumes que meu olfato ainda teima aspirar

Nada importa. O mar que olhávamos ainda estará lá

Porém, os nossos olhos nunca mais estarão para ver

Mas em mim, pouco a pouco, as feridas vão se curar

E as cicatrizes serão novas linhas para criar o verso

O poema, letra a letra, a tempo também te olvidará

sábado, agosto 26

O anuário non sense de inutilidades

 Janeiro: não distribuo esmolas

Frequento rodas de luto pelos

Umbrais frios das madrugadas

Disputo com cães as calçadas

Nessas horas quietas e úmidas

No ar, um breve odor de uvas

Fermentadas como um poema

A embriagar algum desavisado

Fevereiro: prurem-no questões

Vergastam-lhe os olhos rubros

Alma desnuda nas intempéries

P’ra perseguir somente o nada

Por não calar, dizer algo inútil

Palavras malcheirosas ou nulas

Resíduos de todas as partidas

Março: Tremula essa chegada

Flâmulas fúteis ou até etéreas

Na hora que a dor devia doer

De tantos sonhos extraviados

E nem mesmo ainda sonhados

Nos espelhos de corpo inteiro

Ou das partes que persistiram

Abril:  A que serviria o braço

Se não usado para dar abraço

Não acenos chulos e gastados

Audição seletiva aflui a frase

Surda entre gritos subversivos

De pernas que não caminham

Vãs estradas já não caminham

No desejo atrelado às costas

Refulgente na áspera sombra

Maio: Sentidos em entranhas

No meu desvelo por meu país

De tantas vozes multíssonas

Dos parcos rincões distantes

Sumo de frutos tão variados

Só o chumbo te solucionará

Por sua insistência metálica

Na razão das mãos calejadas

Junho: No caminho, a pedra

Perigo por ruas desbordadas

Cereal ausente e ventre oco

Mesmo faminto das palavras

De todos livros inalcançados

Ou tantos poemas inescritos

Sem riso, calado, sem horário

Tudo respondido em silêncio

Julho:  Eu sou tão obstinado

Empunho tolices p’la estrada

Versos na poeira de décadas

Tão atuais quais eu ou você

E tão demodê quanto um cd

Ser poeta, esse ofício triste

Na calma planície do campo

Agosto: Tais gotas sombrias

Prisioneiro por noites e dias

Só a brisa resvala na parede

A poesia é o quanto abunda

Para se desigualar da morte

Silêncio ao fim d’um inverno

Que espera outra primavera

Vir nascida a gosto de Deus

Setembro: Debalde a cidade

Corrupia a fumaça cinzenta

A alimentar a fuligem do dia

De lonjuras incomensuráveis

Mui amplas e quase infinitas

Riso amputado e desgalhado

Nos faculta migalhas e jejum

Qual a chuva que nunca vêm

Outubro: Vamos desvivendo

No ar roubado que se exalou

Pelos vinhos anchos à deriva

O barro não criou diamantes

Séculos de rudes esperanças

Um dia que possa desmorrer

No credo de tudo e do nada

Novembro: não há elegância

Na falta da honesta angústia

P’la dorida tristeza cotidiana

Vencida mágica da paciência

Sem nem um pão para comer

O incansável canto do látego

Posto não entenda nem saiba

Cerrando bocas desdentadas

Dezembro: o tempo solidário

De corações vazios solitários

Nos chãos do retorno a casa

O perfume lilás tinge os dias

Dormidos na palavra ternura

A palavra surte além de tudo

 Aceno ao dia punho crispado

Um bom dia a rever os filhos

São poemas que a vida pariu