sábado, novembro 25

Apocalipse 2023

 Não jurarias p’la noite perfumada d’um amor só começado

Pois o sentimento adirá aos olhos humanos como um visgo

Não, não o dirias pela noite gritando em loucos megafones

Que o ozônio que se foi, ora aquece a terra, planeta risco

Não clamarias por outra arca da destruição num novo fim

Pois não viria um dilúvio, tudo sendo consumido pelo fogo

Eis que vez todos mortos, nos ditarão a nova tábua de leis

Sem os murmúrios e balbucios da escória a novos inventos

Será reinventada uma compaixão, feita apenas de empatia

Sem o arrastar de correntes, línguas antigas e sem punhais

Sem o cuspir das balas ao som inesgotável dessas matracas

Então serão lançadas fora as máquinas de triturar sonhos

Que poderiam ser livremente sonhados e quiçá realizados

Não haveria os bares nas esquinas das grandes metrópoles

Ânforas de cobre coletariam toda a água que se irá beber

Nos caules das rosas ou dos figos não nasceriam espinhos

E nas melancias os caroços e cocos teriam cascas macias

É quando, enfim tudo reiniciará sem essa monótona sorte

Toda lágrima secaria só amando, também, se nos amassem

Sem o risco de se apaixonar e, pior, até ser correspondido

Sem corações feridos, não mais se escreverá as cicatrizes

O poema enfim, seria escrito tal se manda nos dicionários

sexta-feira, novembro 24

Tudo e Nada

 Pássaro, sou poeta sem nome, sem estirpe

Um pássaro das letras e silabas de pássaro

Palavras ruivas, tão vermelhas, tão negras

Carregadas no vento que trouxe as chuvas

Aos olhos d'um céu cinzento, inconcebível

Um pássaro que se incendeia e renascerá

Desplumado como víbora, breve e atenta

No sutil e volátil ar se converte em águia

Para, rasante, atravessar as teias da vida

Bicar a estrela da manhã, qual fosse nada

Tocar no sonho da noite, qual fosse tudo

Numa incipiente primavera, tudo ou nada

Amanhecer enfim, dia após dia, sol rubro

Nutrido da palavra oculta, do sal da terra

E despertado, beber do vinho que é verbo

Mistério real da transmutação do pássaro

No poeta que busca na sombra e vê a luz

quarta-feira, novembro 22

Julie e o Andaime

Lembro-me do dia que te conheci, eras qual o vendaval

Tua presença tocou com a verdade, em minhas pupilas

Vi a tua vida de fora, no limite perigoso de um andaime

Vi tuas escolhas, teu desejo do imediato e sem amanhã

Fazendo do que seria prazer ser somente silêncio e dor

Hoje o corpo desgastado, mais sombra que pele e ossos

Nada hás de ter na terra, se não o guardaste no sonho

Nada mais te será dado, pois te deram tão só uma vida

Um milagre, um brinde, uma única estadia nesse corpo

Cada estadia é gloriosa, é o cântico de todos cânticos

Uma alma, um anjo das asas rotas e trazida pelo olvido

Navegando qual barcos transparentes entre as nuvens

De onde vinha o sol, germinavam suaves flores carmim

Mas caminhastes por caminhos tão breves e perversos

À luz de impensáveis partituras, entoadas em si menor

Tua casa um espaço aberto ao fim, uma noite sem céu

Nunca virei-te o rosto, nunca te ditei quais geometrias

Porem me despedi da história, finda antes de começar

segunda-feira, novembro 20

Sina

 Penetro-te por cada ranhura

Em cada greta resvalo

Entro pelos orifícios

E tu chias

Não importa a forma

Eu te observo

Meu olhar úmido

De quem se abrasa

Um instante

E o inseticida

Vem pelo túnel

Sufoca-me até matar

Verme que sou

Deixei marcas

Em ti madeira

Somos esses

É nossa sina

Ser assim

Eu cupim, tu árvore

sábado, novembro 18

Outono Irrevelado

 As lâmpadas acendem-se em artérias de silêncio e a sombra passa

No segredo do pensamento, tal a pedra indevassável é o sinal que

O outono retornou para dar a crua medida de todas as ausências

A plena negação de tudo que um dia escapou e chamamos de real

 

Escrevo o poema com o ar da tarde que se transformou em vento

Com a chegada da noite e, estrela, se revelará pela imensidão azul

Qual um cheiro de dor antigo e mesclado com os taninos do vinho

Do tempo que o meu coração batia no hemisfério esquerdo do peito

 

Há quem declare o outono em seu gris, até sonegador das palavras

No entanto é voz, a replicar o pensamento, a atravessar distâncias

Nas coisas e memórias que tocou mais leve com sua transparência

E as ressuscita para desaparecer o todo comprometido com o real

 

Devolvendo-as ao sonho que as multiplica na voragem do palpável

Em tempos de dias ácidos, vem oxidar o oxigênio febril da insônia

E o faz este poema emergente, prefaciado de palavras indormidas

Que zunem no zinco das tardes, entre as amoras de meu passado

 

Escrevo poemas, mas aquele coração, ficou à margem da linha do

trem que já partiu, naquele outono que tenho em mim, irrevelado

sexta-feira, novembro 17

Prima Vera

 Prima,

 

Este silêncio

nesta manhã de outono

fria como nenhuma

 

Caminho

sem pensar

nada tenho a perder

 

É domingo

Vera

os telhados escuros

da avenida vazia

os ramos secos

poucos

entrelaçados

uma pomba que belisca

a água podre da sarjeta.

 

Nenhuma alma pela rua

nem o porteiro que varre

nem os cães

 

Entre raízes da seringueira

da praça da liberdade

os sem teto

encolhidos.

 

Na banca de jornais

vomitam-se as notícias

da bolsa, do dólar

da droga, corrupção

o pássaro morto no canto

não canta

são buzinas que

rompem o silêncio.

 

Chove

e a TV só funciona

vez ou outra ou menos

a cama desfeita

lençóis amarrotados

 

não vou compartilhar com vocês

que diriam?

que tampouco viriam?

tudo bem

 

Papéis desordenados

pelo chão

esquecidos, suponho

 

A máquina de escrever

sem fita

cinzeiros cheios

E eu nem fumo

livros amontoados

 

a roupa suja de tinta

no vidro da janela

quinta-feira, novembro 16

Não culpe a chuva

No final, outros olhos vão definir se fui luz ou trevas

Não será minha hipotética nobreza que virá me julgar

Antes, é à espada do inimigo a que deverei responder

Sem que escolha a companhia da harpa ou de belzebu

Neste denso caminho das dualidades e subjetividades

Sei que menti quando precisei reinventar-me no vazio

Sei que menti quando devia iludir o mistério da morte

E assim mesmo, navego só neste mundo de incertezas

O pó do tempo d’outro século, já se deposita em mim

Tempestades e tormentas insanas tatuaram-me a pele

São memórias flutuantes do oceano de minha infância

Onde escondi os perfumes dos bosques de eucaliptos

De meus pecados e serpentes faço música rock’n’roll

E confesso também me deleita o som e a dor do oboé

Sei que nada neste labirinto me devolverá ao passado

Então me entrego ao destino que nasce com a aurora

Se eu morrer no domingo antes da chuva, não a culpe

Afinal, não tem juiz mais sábio que o passar do tempo