sexta-feira, fevereiro 8

Fuga

 Eu hoje tive um sonho insano, me via numa fuga feroz

Tudo advinha em meio a um vórtice de cenas voláteis

Pelas ruas frias desdobradas em duras esquinas vazias

Tudo tão nebuloso como as noites destes últimos dias

Imagens se evanescem deixando só o rumor de passos

 

Nada me é revelado, nessa rápida sequência ficcional

Fazendo me sentir prisioneiro d’uma angústia sem fim

Uma eternidade de solidão gravada em duro mármore

Peça d’um louco teatro de calçada sem roteiro certo

E os atores movem a boca, mas não os podemos ouvir

 

Seria eu o personagem principal dos sem voz? Não sei

Ou seria apenas um espectador a assistir esse drama

Sentado na escada do tempo, carcomida em espanto

Nas horas perdidas diante de um outrora fulgurante

E na fuga, em dor, parei sem saber onde poria os pés

 

Nas outras criaturas do cenário não vejo expressões

Apenas um arremedo da dor real na chuva da manhã

Um vazio intangível, nenhum horizonte para se olhar

Atores contracenam atônitos com seus olhos úmidos

Atormentados pelo ágil, irreal texto inescrito e mudo

 

A mulher em trajes íntimos de renda atravessa a cena

Traz no peito uma cruz vazia, abandonada já há muito

Ninguém a socorre e ela se vai abraçada a sua sombra

A saudade da brisa do sul, rememora sorrateiramente

Quando passa altiva nas letras desbotadas dos muros

 

Sigo em fuga sem saber do que ou de quem, já é tarde

Farejo segredos inconfessos e quem não confia em mim

São como aves de plumas negras a me dilacerar o peito

Que não têm pressa no ofício de me devorar o coração

Um sol que não vence a noite de meus olhos admirados

 

Deixo a cidade, cubro planícies, ganho as montanhas

Sigo veloz beirando mares revoltos, ouço relâmpagos

Imagens de outrora se fazem náufragas diante de mim

Ofegante, acordo em pranto e me levo atônito à janela

Um vulto solitário se afasta, sem respostas, sem razão