quinta-feira, novembro 29

Espirais


Meu espírito enverga um quê de tristeza por estar preso à carne
Que vai se desfazendo com o tempo e por vezes antes do tempo
O corpo tolhe as asas da alma e lhe abdica o voo em cru silêncio
Como ocorre com a folhagem que é derrubada pela chuva forte
Seria natural ser éter, ser luz para reflorescer liberta pelos céus
Mas, agrilhoada, torna-se pensamento e o pensamento é miragem
Facilmente cativo, traz na fronte a mágoa de viver nas planícies
E lhe dói a saudade silenciosa, o anseio de caminhar pela aragem
A volúpia de esgueirar-se entre os astros, misteriosamente irreal
Pois minha alma rejeita a prisão, faz-me pássaro ao sol de outono
Assim descrevo espirais entre os nimbos como se fossem castelos
Que, muito brancos, contrastam ao tom vermelho do entardecer
Nessa pintura celeste, ilusão irrealizada, alforrio meus fantasmas
Também todas lembranças doloridas que meu corpo obstina a ter
Renunciando ao conceito de humanidade, se não for para ser feliz
Então demudar os alicerces e inquietar a hipocrisia convencional
Curar a miopia doentia com que olhamos o que realmente importa
E fazê-lo, com mil palavras sem nexo, sem fronteiras e sem culpas
Cantarolando, alado, onde o vento faz a curva, rumo ao anoitecer

quinta-feira, novembro 22

Longe


De cabeça baixa estavas e parecia que me fitavas
Teus seios afloravam da renda do vestido de festa
Na parte entreaberta sobre o teu ombro esquerdo
Nessa última imagem que vi de ti já não tinhas vida
A dor me trespassa o peito, já nem consigo chorar
Estendo a mão com tremor, alcanço teu braço nu
Tento te imaginar como há horas atrás e te cobrir

Palavras tínhamos dito, decisões seguras e rápidas
Decidimos com leveza as direções de nossas vidas
Pois sabíamos toda luta que teríamos a enfrentar
Para reunir nossas vidas e esperanças num futuro
Volto a nossa noite passada. Foi algo inesquecível
Cada uma era sempre como se fora a primeira vez
Mas esta não. É a última vez, jamais vais retornar

Sinto-me em um deserto de areias negras sob o sol
Elevo os olhos aos céus para buscar por respostas
Mas não vejo nada, não há uma luz, não há nem ar
Privado de ti me quedo vencido em meio a sangue
Porque queria te seguir, te rever dizendo que sim
Mas não tenho essa graça. É só silêncio e angústia
Não há um mínimo alívio para aplacar essas dores
Já nem vejo mais, escurece, ouço sirenes ao longe

Sabes quanto eu quis te tirar dali, trocar de lugar
Nas profundas chagas que eu mesmo abri em mim
Pensei que assim iria te seguir, te amar pelos céus
Estaríamos num espaço azul e anjos nos sorririam
Trazendo a ti de volta para meus braços refeitos
Mas tudo que encontrei foram somente sombras
De tanta tristeza esse meu coração quase morto
Vai revivendo solitário o ar quente daquela manhã



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segunda-feira, novembro 19

Mar negro


Nestes dias de luta solitária signos amargurados se devoram
e nascem em mistério tomando o dorso da madrugada erma
A noite qual um negro mar aéreo é profusa de estrelas-peixe
No escuro, só o vazio com seus gritos e suas fugas sem adeus
Infecta os rostos de espanto e angústia e nem o verso decifra
Navegam em seu próprio enigma pelas águas doutro oceano

Visto azul e rumo meus sonhos para além do que conheço
Resisto e diviso o limiar do novo dia que virá do horizonte
Abandono todos acessórios e empunho a pedra dos signos
Refuto sentir a dor que me habita e redesenho o itinerário
Debruço-me naquilo que irá me renascer e me revelo outro
Na minha voz, o silêncio é o tal paradoxo desta madrugada

Busco me inspirar no lumiar precário que a noite oferece
Meu verso aterrissará no papel, qual o pássaro de agosto
Pousará entre as folhas para prenunciar a nova primavera
Virá para colorir as auroras assinalando 0 fluir das cores
Recordar-me-á dos sinos das manhãs da infância distante
Que inauguravam domingos tão modorrentos de outrora

Quais vocábulos, diante dos olhos, que falam dos sonhos
Quais líricas lembranças ficarão impressas em minha alma
E a substância etérea desse pássaro revoado do arco-íris
Como se dedos invisíveis os sustentasse fora das sombras
É da negação da gravidade que gera o desígnio de se elevar
Pois tramas trágicas do imaginário não recriam a realidade



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