sexta-feira, março 29

Ama-me


Ama-me, mesmo que pouco por vez, o rio se faz de pingos
Anda entre meus poemas, eis que clamam a tua presença
Breve o silêncio será engolido pelas horas e o dia nascerá
Rapidamente o frenesi do dia me roubará tua companhia
Toma mais um gole de vinho, ainda temos tanta conversa
A manhã logo virá reclamar a si todos nossos sonhos azuis
Há tanto de ti dentro de mim que transborda meus olhos
Que são pouco para beber toda imagem de tua perfeição
Sim, fica mais um pouco, sem disfarces, mais uma música
Olha, vê o orvalho prateado ao luar são estrelas mínimas
Transpirando toda ousadia e maravilha do pulsar do amor
Ama-me, ainda que venha a chuva e o vento te assustar
Porque te trarei entre meus braços, além das aparências
Pois, mais que tudo, juntos somos porto e abrigo seguros
E jamais o inverno se multiplicará, frio, em nosso caminho
Enquanto o poema se reflete na vidraça, debruça e afaga
Na calçada já se ouve os passos dos últimos desgarrados
Enfim é chegada a hora de partir já tendo sede de voltar
Nos caminhos difíceis da vida, só anda quem ainda sonha

Imperfeito


Hoje quero escrever um poema, imperfeito, triste de palavras
Soltas, fragmentadas, recheadas de conjunções, sem abraços
Um lago sem cisnes, de pássaros mudos e o tempo passa veloz
O sol vai se pondo sereno, indiferente, o céu perdendo o azul
Quantas quimeras se perderam nos incontáveis desencontros
A lua nova realça as estrelas que vão piscando seu brilho frio

Hoje vou escrever um poema sem glórias, sem flores no campo
O chão nu, crestado dos verões, sem o perfume das gardênias
Guardo meus sonhos num relicário qual fosse uma outra vida
A vagar perdida em algum lugar translúcido do espaço sideral
E a lua cresce minguante como um sorriso que não mais se vê
Outra vida, outro lugar, tudo ficando cada vez mais distante

Hoje vou escrever um poema mudo e áspero, palavras ao chão
Quero versos desordenados, rabiscados bruscamente no papel
Como a solidão do carinho que se cultiva, entanto não se vive
Como a ausência que não é da distância, mas de presenças vãs
Já não posso escrever frases leves e transparentes qual a seda
Nem o manso soprar do vento que um dia já ondulou os trigais

Hoje vou escrever um poema cortante e frio como uma navalha
Pois a esperança foi a primeira a tombar, ferida de desilusões
Vai-se a tarde e o que havia de claro em minha alma se perdeu
A olhar de cima os destroços fumegantes na beira da calçada
Não mais sou o pássaro na magia de sua dança entre as nuvens
Sou tão-só alguém na vastidão, a caminhar só, na busca sem fim

quinta-feira, março 7

Nada mais

Oh memória, o que não me deixas ver que guardo sem saber
Quais são essas folhas que o vento forte não pode arrastar
Porque de tudo apenas resta uma indelével imagem funesta
A marcha compassada das horas traz angústia, não consolo
Toda vez que a hora do sono se aproxima, também batalhas
Que não basta vencer se os tambores rufam até amanhecer
O acordar não traz arrependimentos, nem deixa revelações
Entre as lutas profiro orações de improviso, sob as estrelas
Castelos desmoronam bem diante da ponta da minha lâmina
A lembrança sólida da percepção de um abraço me percorre
Numa recordação remota das pinturas coloridas de outrora
Agora só a parede, marcada de pregos onde não há quadros
Percorro inquieto, corredores enfeitados de retratos mortos
Visto uma máscara ao acaso para que a sorte diga quem sou
Estradas amarelas, paralelas e vazias onde eu sou tudo que há
Cães uivam para a lua rompendo o silêncio entre os destroços
Na curva da noite, silêncio que me sufoca, mas finjo não ver
Amanhã, o sino chamará os fiéis à missa, onde irão alienados
Com sua fé permeável, para comentar das pessoas à sua vista
Sob o olhar de cristal das tão eminentes estátuas dos santos
Enfrento meu tapete de ausências, mas não encontro o sono
Espio os trilhos que se estendem pelas estepes noite adentro
Lá estão os trens, que carregam toda dor, em seu isolamento
Cantada nos versos antigos, que me devora até o amanhecer
Que me sufoca em espasmos que rasgam o silêncio em cinzas
Não há hora como a da morte, que chega num lapso da visão
Em seu abraço frio e sólido, sem indagar de arrependimentos
Para alguns haverá doçura nesse abraço, sofrer chega ao fim
Não mais surpresas, desilusões, não mais abandono, nada mais
Descemos a ladeira sob escombros sem saber o fim da descida