sábado, maio 30

O pássaro e a serpente



O pássaro caiu de seu voo preso no ar com o peso de suas memórias
São espectros de uma vida vã cercada de silêncio, de lábios selados
Detrás de um sorriso impostor, há um nó de uma tristeza escondida
Uma angústia que vibra fazendo o pássaro ter suas formas perdidas
A dor tem o dom de nos assaltar deixando perguntas irrespondidas.
Atrás desse tremor busco uma figura no escuro, um susto sacudido

Em nome de quem te ergues destes versos a descompor os sentidos
Porque me assombras em meio às noites trespassando minha razão
Espargindo o enigma, cantando esse canto para meu espanto e fugir
Absorvo a ideia que reabriste o livro decidida a continuar a história
Estranhos presságios renascem deste transe em tua face escondida
Com dedos de agulhas e linhas recosturas milagres em minha carne

O pássaro volta sua face para a negritude da noite e então mergulha
Com as asas do pensamento nutre seu voo solidão à imagem que viu
Sabe que a razão repele a quem seu coração pressente nessas figuras
De obscuras palavras que tomam outros contornos nestes dias ermos
Reconstrói antigas promessas e a vida lhe volta a palpitar sob a pele
A esperança renasce impregnada de recônditos mistérios e segredos

A magia é o dom de reinventar-me alado para alçar voo noite adentro
Sem limites, sem forma, acima da selva de pedra da qual me desprendo
Deslizando na quietude do ar sobre a planície verde agora adormecida
Fluindo sobre as estradas serpentinas que imitam rios de águas negras
Que seguem para além do horizonte onde o vento e a terra se reúnem
Um feixe de luz guia os movimentos para o pássaro irromper liberto

As múltiplas horas entre o anoitecer e a aurora escorrem-se lentamente
Submerso na minha solidão cotidiana, pulsa a dúvida que não vai calar 
Signo após signo se reúnem além das sombras, porém não há respostas
Porque me queres além do trivial, sabes que não há trabalho de artesão
nem formula a moldar esta pedra para despi-la de suas arestas enquanto 
apenas os silvos da serpente desafiam o silêncio da noite a imitar a vida.

sexta-feira, maio 29

Paternidade



Ele tinha o rosto em silêncio como pedra viva
A boca fina e esquiva não trazia sorrisos fáceis
O cabelo era fino e claro, cheirava a gomalina
Com a navalha tinha a barba sempre bem-feita
Eu o achava tão alto quanto eu gostaria de ser
Quando sentava no sofá, cachimbo e chinelos
O cachorro deitava-lhe sobre os pés em ritual
O rádio de ondas curtas chiava e dava assobios
O locutor falava espanhol e ele compenetrado
Ia decodificando o mundo, sorrindo enigmático
Vez ou outra olhava para o vazio, onde estaria?
Não tive tempo de compreendê-lo mais a fundo
Muitos anos passaram desde quando ele se foi
Quando eu descobri o porquê de ouvir noticias
Também descobri que o tempo não volta nunca
Tinha tanta coisa que eu queria poder lhe dizer
Eu queria mostrar-lhe estes traços tão sumários
Cuja inspiração o teve como emblema silencioso
Queria ter dito que o compreendo, mas é tarde
Só sobraram memórias a me assaltar o raciocínio
Que a vida é tão curta para tanto que há a saber
Não dos livros, das línguas ou das enciclopédias
Mas da própria vida, misteriosa a cada esquina
A cada volta, parecendo nos ensinar, a vida dá
Meu velho, deixo o que te devia desde sempre
O reconhecimento que a minha rebeldia inata
Nasceu foi de ti.  As respostas um dia as terei.