quarta-feira, maio 19

Tempus Fugit

 Agora que da juventude só restou saudade

Sei a dor da poesia que se esconde na noite

A dor de ave migratória a voar tantos mares

Rememoro os aromas de um antigo perfume

Não sou mais um menino de caligrafia frágil

Mas, nada olvidei mesmo ao longo dos anos

Nem o gesto trêmulo de empunhar as tintas

E fazer que as palavras soem como violinos

Lembranças luminosas de beijos memoráveis

A acelerar o peito como trem desordenado

Para senti-los no vento do outono em maio

Na senda do frio de um inverno prematuro

Onde cintilam, brancas, as folhas do poema

Sei da pergunta que caminha desde sempre

Cingida de sentimentos em nossas sombras

Essa distância do que amamos e não temos

As paredes onde pendemos vivas memórias

O medo de mostrar-se mistérios profundos

Vividos à luz de velas, desse vinho tão veloz

Para nos esclarecer que na realidade o amor

É o querer nascido luz que se fez eternidade

terça-feira, maio 18

Noturno 6.6

 Há dentro de mim, um universo de vidas e apenas uma visível

As demais, a quem nego que se manifestem, cada qual pensa

Irrefletidas muitas delas, algumas políticas, outras cientistas

Difíceis de lidar eu sei, será que sei mesmo ou somente creio

Como desculpa de minhas falhas, haverá outro a quem culpar

 

Há dentro de mim essas tantas vidas, tão peculiares, tão iguais

Pouco de mim eu mesmo conheço, mas me quero, tão, lúcido

Estarei sendo duro demais? Outros, normalmente, são assim?

Ah, a quantos de mim renunciei pelo caminho, a cada desilusão

Em cada dia que o sol não brilhou e a chuva caiu inclemente

 

Há dentro de mim, mil vidas que se recusam a desistir e lutam

Tantas vezes preferi não fosse minha a dor invasiva e latente

Seremos, em breve, sessenta e seis almas a tatear pelo futuro

Uma a cada vez que que o calendário gira doze folhas a mais

Chegarei a fazê-lo? Ora penso serão mais e ora penso que não

 

Há dentro de mim, um universo de vidas e apenas uma visível

E por essa é que hei de resistir entre tantas que têm tombado

Estes são dias duros em que temos que nos esquivar do medo

Sem abandona-lo, todavia, pois o inimigo invisível é implacável

Resistir e até ousar, mas sem abusar da confiança imprudente

 

Há dentro de mim, vidas e vidas quais não pretendem se calar

Por vezes já fui pássaro. Asas abertas e, como limite, só o céu

E o desconhecido era aquela flor exótica de fragrâncias raras

Camuflei minhas asas, mas ainda sei voar, há horizontes por aí

Há, ainda, espero, muitas estradas a percorrer, muitas paradas

 

Há dentro de mim, uma vida que enfim encontrou outra vida

Alegra-me não estar só quando o trem partir à última estação

Cada um de mim, enfim tomará seu lugar, sentados às janelas

Tudo se revelará ao longo dessa, que será a maior das viagens

Quando todos nos reconheceremos, cada um afinal é quem é

sábado, maio 15

Fábula Social

Não escolhi este lugar disforme no enorme vácuo dessas vaidades
Este lugar apinhado com inúmeros perfis, quais tristes procissões
Formam fabulações vivas a percorrer os sentidos, crispar os olhos
Entre as nuances invisíveis que se projetam no fulgor dos sonhos
 
Não pretendi estar aqui entre sorrisos simulados e silêncios gentis
Um mundo que vale o que se tem por exibir e etiquetas elegantes
Ocultos atrás de máscaras eles expõem à realidade os contrários
Surgem por impulsos, na trama obscura, que é a matriz da dúvida
 
Repassam as palavras, após torcidas pela fricção nos sentimentos
Dão gargalhadas desatadas e ácidas na teia negra das simulações
E o que era segredo transparece em cordões de frases brilhantes
Mas nada se pode fazer, só retorcer a boca num sorriso metálico
 
Entre eles, meu pássaro tem a voz silenciada, tem os olhos mudos
Sente-se exilado, solitário meio a um reino de trevas sem essência
Abandonando qualquer trejeito de surpresa que viesse conservar
Reserva seu voo em busca daquele sorriso de prata d’outros ares
 
Tudo que jazia adormecido ressuscita em sua forma evanescente
O pensamento que é anterior ao ser se liberta em nítidas imagens
Os vestígios de tua meiga lembrança perduram sempre invioláveis
Residem, inesquecíveis, no mais belo círculo da minha imaginação