terça-feira, janeiro 31

Apocalipse 4715





O céu segue coberto de infausto cinza enquanto tarde se vai
O estilar de chuvas negras há muito habita este árduo parcel
Dos antigos sonhos cativos na luz, só restam remotos signos
Nos galhos secos do arvoredo já não lhe pousam os pássaros
A ausência também se despenha, sorrateira no amargo do fel
No espelho baço da memória que exprime uma réstia de dor
Da ave caída, da paixão esquecida e da solidão que precipita

Não há lembranças a abrigar, que se foram daqui uma a uma
Logo virá o silêncio, as linhas em branco e o espelho partido
E, quando se for o poema, morrer-lhe-á aí o solitário coração
Não haverá remotos vestígios dessa vida que um dia se viveu
Sobrará o tempo de vozes caladas, estremecidas. Desventura.
Chegará enfim ao sono que nenhuma pálpebra poderá ocultar
Sob um sol de mistério, sem azuis celestes e sem alvas nuvens

À margem da estrada vê-se as casas com suas portas cerradas
Nas janelas já não há os olhares trigueiros a seguir os viajantes
São apenas molduras rotas que se destacam na parede caiada
A flor jamais rompeu, o sino toca e dá conta de que se morreu
Tudo se esconde no cinzento, sem nenhuma forma ou beleza
No frio metal de lembranças mortas, até o tempo entristeceu
Amanhã serão sombras a beber na fonte, do silêncio de Deus

A jovem virgem de olhos brilhantes colhe rosas ao crepúsculo
Ouve ao entardecer o chamado da morte a ressoar na floresta
Silenciosas, abrumadas flautas do outono, ressoam no juncal
O vento sibilante tilinta nas avelaneiras distantes e obscuras
Há uma luz que se extinguiu na pena que reescreve o poema
Entre os salgueiros onde moravam almas felizes, só há aflição
Nem a lua, orgulhosa, voltará a chegar de novo na hora certa

A brisa da tarde jamais soprará nos trigais,
a doce órfã que colecionava flores raras,
enquanto no seu íntimo sonhava com a chegada
de um noivo celestial, um dia, de regresso a casa,
encontraram seu corpo em meio ao espinhal.