sábado, outubro 21

Outrora




Quais seres dormem, na penumbra, atrás da estante no vazio da sala
Serão filhos das lembranças que me chegam como açoites no escuro
Volto meu olhar à porta entreaberta, não há carros nas pedras da rua
Nem bêbados, com seu passo peculiar, na calçada tomada de silêncio
À minha esquerda há o espelho mágico e os fantasmas atrás da porta
Meu corpo se ilumina como se outra pessoa residisse dentro de mim
Mas sou eu mesmo entre esses cenários, encantos de mares e nuvens
Escrevo o poema de olhos úmidos, sem promessas ou arrependimentos
Desenho frases na alma como vejo nas estrelas e na canção das águas
Recordo os sonhos e reinvento os finais, que os faço bordados de sol
Minha mente resta inquieta destas vozes que escuto e não reconheço
Na tarde sem sal, não vejo saídas e lentamente desfio os fios da sorte
Aquela solidão eterna de outros tempos que devem restar esquecidos
E enfim romper os alicerces da existência machucada de maus tratos
No oceano de naufrágios quando se navegou à beira do fim do mundo
Nos abismos do esquecimento. Da cera moldada se que derrete ao sol
Finalmente, abro a página da vida que descansa à sombra das árvores
Reconheço que ora estou indo na direção do desejo para meu amanhã
Em um amanhecer tardio, a dor se apaga na distância, tudo haverá vir
Mas não poderei ficar esperando tudo acontecer, não é assim tão fácil
É que tudo o que outrora possuí, hoje é o símbolo de um grande vazio
A página do poema, por fim, descansará refugiada do vento incessante

segunda-feira, outubro 9

Longe (revisitado)



Ainda esperamos que o verão nos sopre no rosto rastro noturno da paixão
Como ficou escrito em minha memória de tantos dezembros quase felizes
Se transporto em mim essa vigília é que me dói como torneira aberta de fel
O porvir é um terreno sem dono ou fronteira, onde rui uma casa destelhada

A mesa vazia e os olhos abandonados daquela mulher de nome dissonante
Que já pouco lhe importa se verões ou dezembros, meses são todos iguais
O silêncio denuncia minha existência de fome e fúria nutrido de raízes vãs
A esperança amanheceu no corpo sem fala como uma dor incógnita e nova

Esta dor principia onde a agonia, num véu de cinza, se espalha sobre tudo
Tudo passa, somos só passageiros abandonados que restamos esquecidos
O espelho do tempo põe-nos a idade: uma porção de minutos no semblante
As eclusas das horas serão apenas eternidades renascendo noites adentro

Eis aí os cacos de minha vida, fragmentos do que foi visto, mas não vivido
Há tanto tempo mantida suspensa à espera de alguém que não existia mais
A ternura permaneceu viva no passado qual o vinho tinto que tinge a vida
E onde havia tanto de amor, em um momento ruiu sobre o púrpura veludo

Fazer poesia é pensar palavras vindas da alma, outras dormidas no coração
Todo amor um dia vai conviver com a ausência intransferível das manhãs
Onde apenas um segredo sem cor reina sobre o brilho de antigos perfumes
E as perdas nunca terminam nos desvãos da alma, mistérios gris da solidão