sexta-feira, agosto 29

Do amor

O homem pode querer explicar o amor à luz

dessas geometrias pobres, insciente que não

Se perfaz só de linhas, paralelas ou curvas.

 

Sua existência feita de preces e serpentes,

Não se basta no conhecimento das colunas

arquitetadas em frios e silentes mármores.

 

O amor é arco que curva, também é flecha,

é um fluir de tintas, a insanidade da criação

que se esmerilha em sangue, éter e sonhos.

 

A configuração de uma alma é obra sem fim

é uma escultura regada de mínimos detalhes

espumas petrificadas em cores e singelos nus.

 

O amor é o que une a alma à carne, reescreve

a víbora em escrava plácida, desidrata o silêncio

rompe a distância e o abismo, estagna o tempo.

 

Por vezes, se disfarça em brandas formas nuas

se expande pela incorpórea brisa da tarde, onde

se filtrará, minuciosamente, pelas frestas do dia.

 

Na noite é a mágica que gera a fusão dos corpos,

Sempre à espreita, em movimento lento e brilho,

como quem quer saborear o existir se gravando.

 

Quero um amor acima e além de qualquer limite,

para que tudo mais se extinga e eu me entregue

sem receio, à promessa de que vingue o eterno!

sexta-feira, agosto 15

Visões da beleza

Certo dia, quando as trevas emolduravam meus dias

E o desespero açoitava inclemente as minhas noites

Quando os meus olhos choviam em amargas lágrimas

Duras sombras desprendiam-se por todos os cantos

Lá fora de mim a chuva também se derramava negra

Para escorrer acelerada sobre o asfalto que molhava

Dentro de meu carro, eu queria fugir da minha vida

Pelo retrovisor, via rastros deixados como serpentes

Que me seguiam em meio à teia viva que me enredava

Na minha fuga fui me esconder nos alentos do sonho

Foi assim que te descobri, como que não sei explicar

Pois que foi de tintas de sonho, trêmulas de encanto

Que novo quadro passa a se desenhar nos relâmpagos

Vindo acender em meu corpo, um clamor dos cristais

A noite gris antes outonal, faz-se de clara primavera

As sombras agora iluminadas se movem por impulsos

Debaixo do fulgor da madrugada que as ceifam à raiz

As serpentes tornaram-se fitas coloridas de uma festa

Calando a voz acre da madrugada a acordar sua alma

Vejo tua imagem crescer em mim por laços vibrantes

Teus cabelos finos e delicados, dourados como o sol

Parecem como um campo de trigo batido pelo vento

A luz que surge dessas trevas ilumina-a descontraída

Teus olhos profundos ofuscam toda a mágica do céu

Pois, de tão vivos, não têm o rigor geométrico da cor

Alegres brincam de inocência suspensos em teu rosto

Teu rosto claro é a própria beleza convertida em face

Teu corpo em sua altura e balanço passeia pelas aleias

Dos parreirais que crio em sonho, és vinho inebriante

E contigo percebi que todos sonhos se realizam em ti

Gotejar

Meio à insônia destas noites ouço um incansável gotejar das calhas
Vem contar o fim das chuvas. Som perdido de uma história secreta
Tão cheia de retratos sem história, de uma sempre mesma paisagem
Está cheia de monótona saudade com um quê de mistério e solidão

E se um dia só restar o silêncio, deixando todas histórias por contar
Nem ao menos os cantos tediosos dessas gotas ao chão despencadas
Nem mesmo as falsas lágrimas que do beiral dos olhos se desprendam
Que chora pela ausência do existir, em um tempo sem início ou final

Meu então anestesiado coração verá este poema feito de sombras
E de palavras cansadas e desfrutará de seu sentido subentendido
Achará a paz que prescinde o real escrito nas linhas do horizonte
Tão ironicamente presente, paradoxalmente supérfluo e resignado