quinta-feira, junho 18

A sina e a lida



Uma doce canção antiga de ancestral raiz vem trazida pelo vento
Assoma a meus ouvidos tomando-me como numa breve vertigem
Uma palpitação, calada, toma meu fôlego na vastidão do cosmos
De onde viria tal encanto, de que boca saltaria tão altaneiro som
Os astros a tudo observam com espanto a essa inaudita vibração

Num instante, do íntimo, uma imagem nua evanesce translúcida
Meus olhos a seguem em galope pelas savanas, para onde correrá?
O que fará tal deusa em tão inóspitas paragens de rios sem leito
Traz sua dança para mim na ravina sob um véu de vítrea espuma
Sedutora se infiltra em minhas lembranças de um outro universo

Quando o silencio torna e a cena se vai fica no frescor da memória
A pedra lavrada e polida em que, na árdua lida, se cinzela o poema
Confessa segredos oblíquos por detrás das cortinas dos sentimentos
Assim viaja aos confins dos tempos para resgatar o toque das mãos
Delicado contato místico no acalanto da ternura nos frios invernais

Ao poeta cabe a obra dos insubmissos, semear por álgidos caminhos
Envolvendo o coração em labaredas invisíveis, de ímpetos calorosos
Celebrando a vida face a morte para exorcizar o demônio do rancor
Solidão sombria em que soluçamos exauridos as ausências desta vida
É ser deus feito homem cujo infortúnio é só desejar reinventar o amor

O poeta para espargir o fastio dos domingos e a atonia das segundas
Desenha palavras frias tal qual cicatrizes nas entranhas das páginas.

terça-feira, junho 16

Repaginando



Minha vida hoje é tal um regato de águas negras que viajam ao mar
Antes tímidas aves nele se saciavam, hoje tudo é medo e serpentes
Jamais doces pássaros de bicos assustados com seu canto matinal
Eis-me perdido, calado pela brisa da morte que soprou meu coração
O rosto empedernido demudado na decepção desta triste existência
No silêncio amargo das noites frias a chuva desenha linhas na janela
E refletindo-se no vidro, as lagrimas desenham meu rosto sonâmbulo
A boca muda balbucia líquidas vogais de um verso prisioneiro da dor
Todo encanto se foi, a música, os perfumes das flores, as primaveras
Há um vazio dourado de promessas imêmores na minha mão esquerda
Vi remotas palavras de amor se decomporem na sombra do frio metal
Espalhando negrume como um espectro alado a silenciar as imagens
Vi o grito de socorro acorrentado no fundo da garganta, vi a solidão
As cinzas do pássaro, outrora a fênix, já espargidas jamais renascerão
Para repaginar, cubro-me com o manto da poesia, esqueço que morri.

O que importa



O rio corre sobre seu leito esgueirando-se entres pedras
Vai de forma resoluta, com decisão, seja qual o caminho
Nessa rota, a água com desenvoltura, despida de orgulho
Acompanha as curvas e saltos, sem perder de vista a meta
Importa ter no olhar a certeza de quem olha a realidade

A estrela lavra seu brilho místico ou matemático no céu
Sendo imponente como Aldebarã ou discreta como Mira
Mas lá está a compor o tecido noturno que cobre a terra
Brilho que pode já não existir, na imensurável distância
Importa ter na fala a clareza de quem fala com verdade

O fogo flui sua energia tão inegável quanto incorpórea
As labaredas abarcam as achas de lenha a consumi-las
Mas o ardor consome a si na brevidade de seu apogeu
Fulgura sua chama em direção ao alto como uma prece
Importa ter nos gestos a fluidez de quem é só essência

Na poesia reside um coração já combalido dentro e fora
Ferido pela dor física a que lhe impinge véu o cotidiano
Mais pela dor da intolerância de quem deseja comandar
Caminhando sem destino, sem um lugar onde retornar
Importa ter no coração amor como só o poeta sabe amar

O vil metal a comandar as vidas de quem menos se espera
Obrigado a deixar minha casa por não tê-lo neste momento
Cínica promessa na saúde ou doença, na riqueza ou... rua
Na doença eu imaginava que alguém iria me poupar da dor
Importa ter na mente perdão àqueles que não sabem amar