quarta-feira, maio 29

Banco de Estação

No banco da estação numa tarde de sol a pino
Recosto-me na sombra macia das tuas palavras
Leio o livro que conta segredos em teus lábios
E sussurras carícias na língua em que me falas
Dialogas com o olhar, ébrio deixo que me leves
Bebo, pouco a pouco, as verdades inconfessas
no mar de tua boca que embriaga minhas mãos
Que murmuram ocultos vocábulos com o tato
No teu pequeno barco transportas meu alento
Diviso teu corpo sem mapa nas rotas do tempo
Já nem importa o rumo que este barco me leve
Vamos de sonho em sonho a buscar horizontes
Sob um céu onde o ar tépido enleia preguiçoso
E todos os pássaros vêm cantar com minha voz
Qual no dia que, nos ninhos, já não chove mais
Na esperança que tu os ouças nos meus lábios
Seguimos aliviados e ligeiros ao trem que passa
Transportados de ida e de volta, sem passagem
A fumaça do trem que parte apita viva e louca
Pelos trilhos que nos levam conhecer o infinito


sexta-feira, maio 24

Poema, poeta e coisas mais.

Lembras dos breves dias de junho que estão batendo à porta?
Lembras os morangos silvestres ou das gotas rubras do bordô
Logo mais nada teremos a celebrar senão um mundo mutilado
A vida é qual viagem de trem: partida, já não se pode refazer
Ah, o sol parecia tão delicado à nossa juventude preocupada
Com sua luz que, errante, aprofundava as cicatrizes da terra
Amava escrever no silencio da noite na quietude de catedral
Tudo tão quieto, calmo, cheio, intenso qual fora uma prenda
No instante limítrofe do adormecer, pouco antes dos sonhos
Sinto vir uma euforia (enjoado de realidade) a abrir a cortina
Tecer versos de poema entre o lápis e a máquina de escrever
Madrugada, silêncio, o que escreves e ninguém entende bem
Leio poetas vivos e outros mortos e sou um tanto como eles
Olham-me vivo, por certo, todavia por vezes sinto-me morto
Ferido entre árvores estéreis em sua pura indiferença verde
Vejo meu carinho exilado e ser correto sem ser reconhecido
Pensei em ti e também no vazio, vejo pássaros pretos a voar
Se já não sou jovem tenho fé e orgulho, cada dia mais velho
Qual a moeda de prata que, aos poucos, desgasta sua forma
Mas, nem por isso perde um cêntimo do valor que expressa
Queria poder me curar das ironias, dos olhares superficiais
Que veem mas não penetram são mais atrozes que o silêncio
Queria poder mesmo não admitir que tenho certos defeitos
Na escuridão desta voz que conta e mede, lembra e ignora!


domingo, maio 19

Desatino de Outono

O outono vai caindo das árvores e deixa um vazio de suspiro
A espera é uma estação de trem num domingo azul qualquer
Os pássaros abandonam os galhos monótonos, vão ao oriente
Aprendemos a musicalizar o velho bronze fazendo-o um sino
Que soa postando os fiéis aos joelhos, encharcados de rezas
Entretanto, não fará ver os mortos nem fará ouvir os surdos
Ando pelas ruas empedradas e a lua se esconde nas esquinas
Enquanto flores e carnes disputam na prateleira no mercado
Foi assim que descobri o amor no teu beijo, vertiginosamente
Estavas impropriamente alegre, embaraçadamente romântica
Nossas faces rubras, nosso sorriso de criança comprometido
As partículas do tempo deslizam por dias mais e mais velozes
Nada é qual já foi, o pássaro solitário no telhado espera o dia
No sinal está o rapaz na rua que, esfomeado, brinca de circo
E as lágrimas derramadas se esmiuçam como migalhas de pão
É como chegar às profundidades, deixar irremovível lamento
Ante essa voz, o desfolhar da folhinha, sorte estar incólume
A cidade transpõe paulatinamente, dentro da noite em luzes
Saboreamos com ritmo todos olhares, o sorriso que nos uniu
Entretive-me em refazer tua imagem, corpo em telas e cores
Entretive-me em tecer tua memória com palavras escolhidas
Encontrar-te foi um ínfimo de lucidez em todo meu desatino


quarta-feira, maio 15

Noturno 6.9

Os sinos d’antanho se desdobram num cortejo de partidas imemoráveis
Um instante rústico que rutilou minha coleção de imagens esmaecidas
Flores da manhã expetaladas, onde escondi o rosto na carga das horas
Desenhei um poema com palavras desmedidas no silêncio das sombras
Apenas mais um ato na construção dos fatos, um grito mudo na boca
Na mão côncava, uma mainça de terr’arada, instante de logro e tédio
Se hoje são manhãs de mornos albores, há uma década fora só abismo
Flashes de vida entre parênteses, vi nas sombras o caminhar da morte
U’a tarde outra noite vi o laço do espaço em fúria, vi o vulto do luto
Senti a lâmina fria e se fizeram insignificantes todas as demais chagas
Senti o fio agudo vir de dentro do peito, ouvi o grito surdo do adeus
O destino sinou-me a tal passagem e ainda esquivar do brilho do aço
Descobri quanto o tempo pode ser avaro, descobri o dia pelo avesso
Sei que a morte anda vizinhando e o dia que chegar não haverá aviso
Nesta várzea grisada de perguntas as quais carrego desde a infância
Mas, algo me diz que não é hora de desatar os laços das lembranças
Ainda não aprendi a viver segundo receitas numa conduta ordinária
É o extraordinário que instila a forma que nascerão os meus versos
Tortos eu sei, são a insígnia personificada d’uma juventude rebelde
Certo ou errado, são silêncios passageiros, não há solidão na poesia
Foi assim que rejeitei atitudes que teriam me levado à riqueza fácil
Recebi em troca, o benefício de cruzar portas co’a cabeça erguida
E deitá-la no travesseiro certo que mistérios são só fábulas infantis
E o que nos resguarda são perguntas que só o sonho tem respostas
Da verve inconformista, à resignação que jamais preencheu o vazio
Efêmero que sou, escolhi a insanidade, a lucidez carece ser infinito

 


segunda-feira, maio 13

De vingança

Os corvos voam entre macieiras espalhando o polem
Fora de ti tudo o que resta é meu escrito amputado
Os meus ouvidos fatigados e minha memória pesada
Enquanto maio esmiúça a raiz das febres de menino
Ergo os olhos como se te visse neste dia de desvario
Isto me parece uma pretensão um tanto antagônica
Posto que não tenho nenhum pretexto para te falar
Já que até o livro que te emprestei, tu o devolveste
Aguo a terra com o regador, brotam dentes-de-leão
Pelo jardim o gato corre lá e cá a espantar pássaros
Qual eu corria ao teu encontro enquanto tu fugias
Mas o amor foi a flor que morreu por falta de regar
Confesso que choro ao cortar cebola para o molho
Choro junto com quem chora por ler meus poemas
E recordo ter conhecido cada rincão de teu corpo
Cada fibra, cada músculo e cada milímetro de pele
Mas se nada escrevi no poema é que fui cavalheiro
Por um momento meus pensamentos fluem qual rio
Inundando-me a cabeça com a imagem de teu rosto
De vingança vou escrever um verso nu e te dedicar
 


sábado, maio 11

Cena de Bar

Foi um tempo em que ainda não conhecia teu lábio sagrado
Vesti uma máscara tranquila no inexistente tempo da noite
E eu vivi a noite boêmia desdobrada atrás de cortinas sujas
Em personagens pitorescas nas esquinas escuras da cidade
A sorver o ávido, cálido cálice de licor ao pé da madrugada
Á porta da casa uma sombra, quase vertigem, agita as mãos
Aquele que rejeita seu pão é aquele a quem cabe os restos
Um solene iletrado se acerca para ler o poema que escrevo
Mostra obscuro rancor porquanto meu escrever filosófico
Entanto não sou enquanto poeta mais do que é meu escrito
Mas sei que vale dizer-lhe que se à noite todo gato é pardo
É, por paradoxo, a luz o que faz as sombras mais profundas
Uma multidão de ausentes envolta na sua vigília indesperta
Recolhe as migalhas do banquete ao qual não foi convidada
Assim guarda no coração tudo de iníquo que encontrarem
No dia seguinte serão contadas tantas histórias inexistidas
Os traidores, suas pálpebras semicerradas e olhos oblíquos
Levantam fingindo respeito para saudar a quem desprezam
Os bêbados transportam suas frágeis certezas até as mesas
Avançando pé ante pé pela vacilante monotonia dos copos
Numa mesa de canto, observo todas as cenas desse enredo
Inglória busca ao amor perdido, que nunca pude encontrar
Ela passou por mim com seu hálito de hortelã e eu nem a vi


quarta-feira, maio 8

Pampa Submersa!

Na espera do amanhecer, chegou a chuva e seus mortos
Olho a estação vazia e os trilhos uma longa língua cinza
Vejo a cauda de fumaça da locomotiva na cena distante
O ar vibra ao som da harpa e traz a mensagem dos anjos
As pessoas do trem seus corpos escurecidos de tristeza
Choram lágrimas de sangue, soluçam os pássaros mortos
O coro das ausências, em fileiras aguardam no cemitério
 
Na espera da luz e a morte vem detrás de tantas pupilas
O sangue derrama-se sobre a bandeira lavada de pranto
Por amargas sombras de nuvens na revolução das águas
A insônia rouba os sonhos, inundando tudo às centenas
As pessoas reunidas, mas não há festejos, riso ou canto
A lua desnuda a tudo assiste, boquiaberta, terra abaixo
As aves de rapina agindo livres, as serpentes de espanto
 
Na espera do dia, os perigos da noite seguem arrastados
Há uma busca atormentada pelo último torrão de terra
Uma talisca de chão seco e enfim expulsar as cascavéis
Povo que padece nas caravanas ao sul azul do cruzeiro
Vãs promessas mirabolantes, inexequíveis e ultrajantes
Oprimidos e inermes meio a contingências improfícuas
Conservam a esperança nativa da gentil alma brasileira