segunda-feira, novembro 25

Sina

As nuvens anunciam o outono pelos caminhos cotidianos
Rompo com os pronomes e ébrio de verbos avanço no dia
Assim o poema que acha de ser um tanto qual os mortais
O homem ajoelha em silêncio e é qual a pedra seca do rio
Não guarda nada do rio que, quando caudaloso, a cobria
Um grão d’areia nos degraus seculares a ver passar a hora
A ouvir o pio de corujas crepusculares e outras criaturas
No movimento menor do cavalo, parte o último ceifador
Enfrento a morte com a morte, será mesmo um prodígio?
Como o mineiro que ao sair da mina cobre os olhos da luz
O silêncio que fica a esperar o primeiro ruído para partir
Esboço nos lábios um sorriso de assombro, de coisas reais
A febre flameja com docilidade dentre as tulipas frágeis
A imagem que mostra o espelho é eco do que o homem é
Assim o somos, um eco da própria existência nesta terra
Uma nesga do que um dia pretendíamos ser, quando pó
E na iminência de voltar a ser pó, vivemos na inquietude
De jamais vir a ser, de descobrir que ser homem não basta
Que essa coisa de ter nascido na aurora, um dia morrerá
E o horizonte não é uma linha estendida entre céu e mar
Precisamos é fazer voltar os pássaros e o cheiro do anis
Ser a palavra lançada da boca, caída no seio da verdade
De que longínquo sonho caímos? Que futuro nos legará
A triste sina é que em verdade somos não mais que ondas
Nos levantamos, rugimos, para depois voltarmos a ser mar

 


Anacreôntica

O caminho
É torto
O dia
É longo
O sol sinto
na pele
Mas é escuro
Paro
Abro os olhos
Eis!
A palavra
não dita
Vem a mim
calou-me
Já não há
propósito
Nada é
qual o vês
O papel não
serve mais
O pranto não
serve mais
O dia
É torto
O caminho
É longo


quinta-feira, novembro 14

Café da Manhã

E assim a distância suspirou arranhando as fronteiras do céu
Entre pilhas de papeis alvos onde virão a frutificar os poemas
Velozes estilhaços entre as mãos, flores multicores do jardim
Ouço o som cálido do teu feitiço entre lençóis e sinto-me só
No silencioso ato de lembrar-me de ti, de semanas a semanas
Atormentado na linha do mistério, na parte sutil do devaneio
Ao longe te contemplava, o teu perfume inundando as horas
Reviro minhas gavetas cotidianas para que devolvam a calma
Para rever teu o sorriso perturbador, cachecol xadrez solto
Qual os canteiros verde-escuros e seus malmequeres ocultos
Busquei a verdade como quem ouviu o som da chuva caindo
Mas o sol luziu na sacada sobre a roupa pendurada no varal
Senti-me um estrangeiro neste mundo de colarinho engomado
Camisas de brancos virgens, que guardam tão pouco de mim
Mas amo teus lábios de papoulas que me saúdam sem limite
São o ópio que me entorpece, o porto seguro de meu abrigo
Os anjos sussurram-me arcanos nesta noite em que te recrio
Na minha linguagem de palavras sombrias, de bolas de cristal
Passo a passo, enfim compreendo tua necessidade de ir e vir
Porém hoje te vim buscar, já não me basta te ver num sonho
Quero o calor de nossa cama indormida até o café da manhã

 


terça-feira, novembro 12

O Segredo da Lua

A tarde é um céu opaco na tristeza do entardecer
Impera um propício silêncio a preceder o temporal
Com o pensamento que germina em todas solidões
Minha voz nutre-se do alento, na memória do rosal
No tempo insone que separa a folha receber a flor
Nas voltas decompostas do relógio em turvas horas
A peculiar atmosfera enquanto se aguarda a chuva
As ideias me desertam na espera que a tarde impôs
A crueldade do calendário de saber tantos ontens
Mas a fugidia incerteza de que será algum amanhã
As nuvens, num esgar colérico, troam relâmpagos
Indiferente o ancião bafora seu corroto cachimbo
Cotovelos fincados na janela do outro lado da rua
Sob esfera celeste tão gris algo desgoverna em mim
Como poderia diante dessa tão refinada paisagem
Não sentir falta em assoladora e remota ausência
Não, não queria e nem vou dizer nada dessa falta
Porém nessa ardente flora que nasce da ausência
Não colherei flor alguma. A lua e seu porte grácil
Espalha sua luz pelo céu que as nuvens segredam


sexta-feira, novembro 8

Tuas Letras

Quando o inverno já apontava na instabilidade dos meus dias
Tu entraste em minha vida qual a neve no alto da cordilheira
Por mais que me recusasse, tu brilhaste em mim como um sol
Eu que era crepúsculo, minhas pétreas premissas desabaram
Quando me beijaste nos lábios ao vento noturno à beira-mar
A imagem de teus cabelos esvoaçantes não me sai da cabeça
Tuas carícias, qual fugidio vinho, percorrem minhas artérias
Sob a lua das ilusões minha voz recita versos até o alvorecer
E eu, vítima de teu feitiço, perdi-me no sonho de tua vinda
Teu incandescente beijo carmim que me fez ébrio de desejo
E desnorteia o coração que em meu peito palpita acelerado
Com tua pele de luz resplandecente a iluminar meu caminho
Chama incessante, assim viajo pelas dimensões de teu olhar
Minhas noites cintilam por ti e os astros e estrelas são tuas
Galáxias inteiras ou um único vagalume perdido, é só por ti
Este poema também é teu, afinal, és tu a razão destas letras

quinta-feira, novembro 7

Desafio

É tão fugaz e esquivo dar vida ao mistério das palavras
As poesias desde sempre entranhadas em meu coração
Mas nem assim me pertencem, assumo, mas me habitam
Numa vida que tive tanto que andar e de me desgarrar
Inquieto-me em poder dar ao bronze formas e essência
Súbito descubro que ao festim foi convidada a solidão
Faço com que a melancolia seja nada mais que desafio
Prosseguir jogando o jogo entre todas as minhas idades
Onde os pássaros cavalgam os ventos, acima das ondas
Abrir a janela, aspirar o campo, o cheiro de terra úmida
E recordar da brisa que se entremeia entre os arbustos
Mesmo quando dói trilhar pelo caminho da maturidade
Esquivando-se dos ritos, consultando signos e oráculos
Recorda hoje as vozes de outrora baterem à tua porta
Relembra da esperança amanhã, porque nunca foi fácil
Pois aqui estou como menino a cantar velhas canções
A sorver o novo poema, tal quem sorve a taça de vinho
O poema mais lúcido de um novo implacável anoitecer