quinta-feira, março 21

Amargo Demais

Encarar o passado é navegar no rio turvo que nos afronta
Sonhar mas não dormir sob sussurros inquietos dos astros
Um árido deserto o qual disputam lagartos e rosas bravas
E qual papel estás preparado a desempenhar? A ave solta
Entre nuvens brancas no céu? O capitão de mão de ferro
Um rei enforcado no jardim? A montanha lá longe do mar
Em verdade podes olhar a sujeira que o espelho te revela?
O passado é a fome tanta que até os vermes já morreram
O resto no prato vazio e que apraz às invencíveis baratas
O passado é o açoite, centos lábios em gritos e grunhidos
A mais plena solidão, sem porquês, até se duvida de Deus
Eis que a fumaça dos incensos ora é a fumaça de canhão
Conheces o presente? Cheiras ou percebes esse amargor?
Nem assim olhas a sombra às tuas costas, o que há por vir
O que pode dar ao desenlace e cobra uma cifra sangrenta
Será que buscas em tuas axilas um voo qual o do condor?
Nenhum bálsamo sabe apagar o sofrimento que te fustiga
Olha para a frente, lá é o presente: risos, gestos e acenos
Esquece o passado, esquece a chaga traçada na tua pele
São os efeitos de feitiço forjado por esses verbos inúteis
O passado são dentes sujos de cáries e amarelos de sarro
É o vômito espesso, do excremento ao temor e do sangue
O passado é a mulher - menina afogada pelo sêmen brutal
É o guri sem futuro estripado ao pé dos muros da cidade
O passado não move moinhos e nem o ponteiro das horas
O passado se move fermentado de visões só na tua pupila


terça-feira, março 12

Última Onda

Tenho um grito tresloucado dentro de mim e não me ouves

E a negra tinta que lentamente escorre da pena pelo papel

Traça ondas de letras qual linhas que o mar traça na areia

Despertei e vi um mundo desigual a quando me pertencias

Teus olhos desobedientes a me fitar como dois horizontes

Tua silhueta elegante a fazer par a um mar só de teu sabor

O aroma dos jasmins das noites de verão qual teu perfume

O brilho das estrelas se acanhava ao brilhar do teu sorriso

Passou um oceano inteiro desses dias e só escrevo porque

Uma tarde de março sem poesia é tal um amor sem amante

O vento veio soprar e os cinzas da noite começaram a cair

É solidão outra vez. O coração caminha sem saber onde ir

A música apenas silenciou, fez eternos contos se diluírem

Partistes sozinha e levastes os projetos d’um novo futuro

Levastes as vãs promessas feitas, mas deixastes os sonhos

A última onda na areia apagou as marcas das tuas pisadas

E não sei onde fostes parar, apenas sei que não chegastes

Onde te esperava o espelho da vida, isso jamais te refletiu

E a névoa encobriu tua imagem que sequer acenou adeus

Nossa história é qual árvore negra que fruto algum gerou

 

quarta-feira, março 6

Ébrios de Deus

Chegas com a luz do dia, no mistério calado de saberes

O tanto sou teu a te espreitar incessante incomparável

O que revelaria teu aparecimento de fim e de princípio

Tu que és substância, absorta do fragmento da estrela

 

Desde o impacto inicial me irradiaste o negro vocábulo

A consciência do “silêncio sonoro” é como eu o nomeio

O mistério de dar-se sem dizer e amar de todo coração

Nesta relação de desprendimento me sacias repentino

 

Quais os argumentos de filha pródiga vens a me povoar

O pulso lúcido colapsando a fonte da noção e procriar

A compreensão global do verbo, nosso pecado original

Uma voz que para decifrar não se cala em seu arbítrio

 

De rosa a rocha, do raio a rio, de riso a rito e do ritmo

Um episódio de realidade, eco vibrante avança a tarde

Fluxos de diálogo me fluem nos lábios, nos olhos ávidos

Povoando plena ligação de nossas histórias longínquas

 

Sua completude, sua nulidade, o sonho para entranhar

Ouço o coração qual madrigal transparente do tempo

Um pulso amoroso e teus cabelos já moveram o mundo

Meu mundo! Vacante, imemorial e outras vezes ameno

 

Vencemos o espaço-tempo, caudal da ignorância crua

Fizemos do reino de cada um, nosso reino de todo um

O sabor da consciência de quem sabe andar no sonho

Ébrios de Deus nos pulsa a veia elemental amor e arte