sexta-feira, janeiro 31

Beijo

Beijo cativo
Pele tão alva
De pêssego suave
Pálida de lírio
Cálido delírio
De agonia a palpitar
Tão rubro lábio
De lânguido convite
Beijo prisão
Culpa que confesso
Sim te desejo
Sou ave em fuga
Rompendo o ar
Nessa boca voar
Carmim e volúvel
Além da amplidão
E o que era beijo
Ora é suspiro
De tanta solidão

O lago

O lago, lâmina liquida qual espelho, me reflete a face
Tímida página lírica me vejo entre monstro e médico
Esquivo-me do feitiço da bruxa de olhar petrificante
Miserável, deslumbrada que ronda a sílaba do poema
Para que o maltrato transponha ao papel seu retrato
Súbitos olhos, pálida face de sobrancelhas enganosas
Epitáfio no frio mármore celebra cruel aos passantes
Pedra de indiferença a muitos, sofrimento de outros
Na desfaçatez sedutora para a morte não há véspera
O poeta deseja ir adiante e ninguém mais se atreveria
Um amante das palavras que outros não ousam dizer
E assim se faz palavras afrontosas, pausas e silêncios
Que a pena seja a lanterna acesa em plena escuridão
Não há motivo para alarme na noite é comum alarido
Lágrimas lentas e difíceis, lágrimas súbitas e fugazes
Avançam nas incansáveis rodas dentadas do sistema
De tudo fôra o beijo, rastro rubro na borda da taça
A saudade maior que restou d’algum amor candente
A vida se esgueira dentre as veredas de chão úmido
O poeta sonha entre versos emudecidos de espanto

 


domingo, janeiro 5

Mel

Depois que meus passos caminharam para o crepúsculo
Sonhos mortos deitam sua inutilidade ao longo dos dias
Minha devoção frustrada expõe sua súbita cor sombra
Rios suspensos flutuam, no céu, cinzentos para o oeste
Relâmpagos brilham tal insólitos nenúfares transitórios
Quando a alegria com que banhou meu outrora, partiu
Meu coração retransido pela dor não mais pulsou igual
Guardei no peito a incandescência de vulcão reprimido
Teu nome que não pronuncio, ainda retumba ao vento
Ecoando na minha voz que um dia tentou te encontrar
Teus lábios celestiais diluíram-se em espumas imemoriais
Destroços da loucura de nos amarmos até o naufrágio
Mas o tempo devolverá a agitação do mar à minha porta
E uma sensação azul entre meus dedos, beirando sorriso
A aurora me despertará no espírito um lume impetuoso
Tal chama fugaz que traga seus fachos a iluminar bosques
Vou deixar que estrelas brilhem eternas nos meus olhos
Cruzar mares e desertos, não mais assaltado por trevas
E o verso desvendar enigmas de paixão, no mel inocente
Com os quais, singelamente, o amor os seus favos fabrica


sábado, janeiro 4

Ode do Poema Alado

 Pássaro celeste, fábula girando em espiral
Entre nuvens de espelho em um céu claro
Foram os baques da vida que te ergueram
Um palácio de gelo e silêncio ao teu redor
Fez da solidão tua estátua mais cintilante
Mas ainda te levantas das terras sombrias
No sonho que te guia pela tão longa noite
Nesse encanto ímpar de tão drástico voar
Sob o coro de astros, liberto de toda raiz
Assim é viver alado do ofício de escrever
E desnudar segredos, desvendar labirintos
Sorvendo em negra taça, místicos licores
Transportar-se lúcido aos domínios do sol
Pelos angélicos degraus da escada ao céu
Nas madrugadas indormidas sob os astros
És o alquimista que faz de palavras versos
E as deixas a flutuar, tais pérolas mágicas
De fabulário, enigma de todas tuas vidas
E, leve tal o vento, reinar em teu alcácer
A criar sorrisos e lágrimas do teu poema

Página Virada

 
Viras a página
A mesa posta
Pensas
O cenário
Os atores
Viras a página
Móveis em silêncio
Esperas
A folha do poema
Candelabros sonoros
Os relâmpagos
Mais outra página
Adivinhas
O céu da noite
Tatuado de relâmpagos
Em teus olhos
Que cortam o ar
No subúrbio da memória
Uma página vazia
E palavras mudas

sexta-feira, janeiro 3

Dez Anos

Há dez anos a sorte, no tear do tempo, venceu a morte
Para calar-me o lamento em meu mais solitário momento
N’um vale silencioso onde se quedam mudas as palavras
Onde o canto dos mortos convida, a invadir os ouvidos
 
O que teria me salvo da sanha dos vermes, longe do céu
Do salmo augurado pelo profeta da vinda de dias vazios
Enredando rezas de música tinta de ufania e desespero
Onde revi todos temores escondidos detrás das portas
 
Com os braços prostrados ao longo de meu corpo, ouvi
Os sentidos navegarem à deriva, revolvem sem controle
Sem contar com a farsante da esperança, entreguei-me
A imaginar o que iriam me escrever ao rodapé da tumba
 
Mas ela surgiu, num lampejo com seus olhos cristalinos
Silente de pecados, para interromper a minha despedida
Tomou meu coração nas mãos e fez escondê-lo do anjo
Como jamais poderei me olvidar essa cena mais sublime
 
Fecundando meu delírio, deu a luz a meu maior poema
E no que seria o último cortejo, uma via de tormentos
Fez do barro, desprendido da terra, tornar-me humano
Não o demônio recriado, mas um mestre exilado do céu

Deu-me nestes traços, versos com olhos de crepúsculo
Um novo ar, uma mente penetrante que ousa escrever
Deu-me dilúvios de lágrimas, dores incontáveis e visões
E mesmo continuando mortal, a cada fim um recomeço






quinta-feira, janeiro 2

Fumarola

Tudo se afoga sob os traços de minha pena, a tinta é um mar
Onde não valem escafandros posto que nesse mar nada salva
Mais que fosse rio, correndo cheio de pulso entre as pedras
Qual estátuas de sal, imagens sem vida ou lampejos fúnebres
E assim também as peças de meu esqueleto, já ora cansadas
De manter-se em equilíbrio, buscam repouso na água gelada
Por todas estas águas havemos de beber, outras que chorar
Essas lágrimas que não irão aflorar do peito entre memórias
Um museu de lembranças a se contemplar com olhos rubros
Quais brasas vivas a olhar na pálida gema dos anos passados
O mundo anda estranho, um lugar frio que nem vale lembrar
Como um amargo sol cálido, emboscado num perfume floral
Em tardes de verões de outrora, tempo de lírios e de heróis
Onde as asas abertas são de abutres que contemplam o fim
Contemplo o ar tão denso de orvalho que é quase um olhar
Os caminhos irregulares tais as bordas de minhas cicatrizes
Sob um céu que ainda carrega nas costas todas as estrelas
Que nos tempos da infância carregava e a fumaça ocultou
E lá adiante, volta ao rio, que corre manso entre a folhagem
Da minha janela a paisagem reclama entre densas fumarolas