terça-feira, abril 29

Amanhã

Nestas horas sonolentas da noite, cobra-me o tiquetaquear desse relógio
Vir o sono, eivado de solidão e amontoado de minutos ocos e horas vazias
Mas ao invés de dormir tomo a rédea de seres alados, rumo às distâncias
Amanhã cobrar-me-á o despertador que tenha salvo no sonho a esperança
Tu a quem Morfeu cerra os olhos e não imagina o vento etérico que sopra
Como um açoite encolerizado, troando entre o criado mudo e a cabeceira
Antes que o ouro solar irrompa pelas frestas da tua janela tenha atenção!
Que não te acorde o frenesi embriagante das areias de um tempo mágico
Que te clamará a presença por lugares tão familiares quão desconhecidos
Os quadros à tua volta abrirão caminhos para que por eles, curioso, sigas
Por entre as tintas de paisagens amarelecidas desses outonos imaginários
Onde do cimo da sela se ouve verbalizar os gritos amordaçados da utopia
E creia, é tudo real. Mas só o musgo da sabedoria acalmará essas dúvidas
Em meio à morna madorra viajarás se não te magoares com tanta arritmia
O tempo é um eco do tempo e díspar daquele tão milimétrico que admites
Em meus sonhos a noite acontece numa exata proporção de luz e sombra
E assim é que o poema se cria, sem ressalva ou impaciência, já pela manhã
Tudo mais, retas e curvas, residem na promessa viva de uma nova estrofe
Não olvides, mais que vocábulo e verso é a entrelinha que toca ao coração

quinta-feira, abril 24

Irremediavelmente

No desejo atemporal que caminha detrás da tua luz purpúrea
Vejo-te tal o pássaro lascivo, que se aventurou na minha pele
Estrela despontada num céu de sonho, abrasada pelo querer
Que me beija, como se beija o fruto da doçura dos mistérios
E nos momentos de quietude povoa meu corpo até se saciar
 
Então com leveza selvagem, tu rabiscas mapas em meu peito
Para eu navegar pelos labirintos de teus brinquedos de amor
E é assim que tua lembrança floresce no meu mundo surreal
Gotejando teu mel na minha boca, meu elixir, flor do querer
Tatuando-me em segredo os signos onde pretendes me levar
 
Doces palavras de luxúria, vieram ancorar aos meus ouvidos
Enquanto ainda ecoam pela casa, entre sussurros de prazer
O espelho na escalada das horas, nos retrata como sendo um
Teus olhos me despertam como sóis que amanhecem os dias
Dias que perfazem em enigmas à espera de entregas de amor
 
Tu chegas com a penumbra e estendes a noite horas sem fim
Irremediavelmente amor que sempre guarda algo pra decifrar
Sou habitante de tumultuadas instâncias de desejo e espanto
Que tem nas mãos um punhal e não quer ferir senão o tempo
Quando este, insensível, ousa me dizer que é hora de partir

quarta-feira, abril 16

Rosa dos Ventos

O norte eleva-se na multidão, um rumor de nostalgia
Não é sobre a flor aberta, mas a lembrança sepultada
O embrião de uma ideia, a tristeza vinda sem porque
Esse suceder de estações, antigos passos pela escada
Debaixo da lua de um abril onde floresçam os trigais
 
O sul repousa ao pé dos montes das grandes árvores
A noite vem avara de vozes, a quem cabe esta ruína
Sem o pó que o vento alçaria se, distraído, soprasse
Esse sangue poético justamente anônimo e profético
Derramado na calçada ao pé dos sonhos irrealizados
 
Ao leste a sua eterna galhardia de ver o nascer o sol
A rua brilha na chuva debaixo de luminárias amarelas
Cavalgo a palidez da palavra amanhecida à beira mar
Retrato num epitalâmio o amor das ondas e as areias
Na boca da noite, cintila a celebração dos contrários
 
Ao oeste o sorriso franco vem tingir o céu em noite
Permita que te cante versos de palavras esquecidas
E que procelas em sílabas azuis, entoem o flamenco
Lavrando essências de esperança, liberdade e olvido
Ah, essa minha mania de amar-te viva, porém és lenda
 
Mas tu, rosa dos ventos, traze-me teus rios celestes
Para eu poder amar-te líquida, fluindo-me pelas veias
Contrariando as voltas do sisudo carrilhão da matriz
Para amar-te criança pela loura mirada do horizonte
Eternamente amar-te em silêncio qual fosse um deus

segunda-feira, abril 14

Despedida

 Toda despedida deixa marcas de desapegos na vida
Algo tal o que fica entre as lembranças e as cinzas
Que são fruto do medo de sobreviver ao abandono
E afeiçoarmos à solidão quando morta no coração
Toda a ilusão e não mais sonhar, apenas adormecer
Tão pior quando atinge a mão que empunha a pena
Que se faz sossego, não mais o ponto de resistência
Mas se torna parecida com o que sempre combateu
 
A despedida esconde em si o silêncio que é imposto
Nossos últimos arrependimentos, o poço profundo
Dores que não revelo, pelos caminhos desse mundo
Viro a próxima página ainda é sonho, o novo poema
As lágrimas caem do céu, da sombra azul do abismo
O sol que nasce na amplidão e ergue o véu da noite
A noite antiga se desfaz no delírio em cor de ouro
E o dia afasta as sombras na reafirmação do tempo
 
A despedida traz o ar pesado de loucura e paixão
O amor que ela rejeita e que breve olvida a dança
Recolhe asas, segue tropego por caminhos ásperos
De súbito os corpos passam a correr; é o recomeço
Tem início no grande drama, a voz obliqua na boca
O trigo cresce nesta lenda, a disputa de contrários
O sonho frágil, a fábula compõe parte da realidade
O sábio lê o poema, então segue leve qual a nuvem

quarta-feira, abril 9

Chão de Barro

Há dentro deste corpo um passageiro des’que nasci
Desd’aquela velha casa de tijolos, de chão de barro
Ali debaixo do teto nas travessas de madeira nobre
Sopravam vozes do vento, me ensinando a alucinação
De caminhar sempre em frente por todos caminhos
 
Dei-me conta do passageiro, sentado na beira do rio
Um menino já imaginando que haveria do outro lado
E o menino ganhou as distâncias, visitou um mundo
Dentro e fora dos sonhos perfumados como jasmins
E tão brilhantes como os olhos da donzela na janela
 
Juntos, descobrimos o amor numa tarde de outono
Amar me ensinou o sentimento que ilumina a noite
Mas, ensinou também que o céu é a ilusão em azul
Fui assim descobrir o amargo da lágrima na distância
O amor é pássaro que recolheu as asas no passado
 
Que olha o que pode, mas não revela porque pensa
No que restou da paisagem pelos campos de trigais
Assim nasceu meu escrito, cúmplice dessa jornada
Na música tocada nas tardes, ao ranger da carroça
Velhas e lentas rodas, a circular tal qual o destino
 
E o vinho tinto que tinge o véu de veludo estrelado
Que faz escolher o caminho, não se sabe o porquê
Também faz o passado continuar sublime e intocado
Meu passageiro, o estranho em mim, sou eu mesmo
A misturar pedaços da vida secreta com a de poeta

 


terça-feira, abril 8

Venta Vento

Sou ave migratória que carrega a saudade no sobrenome
Ave disciplinada na vida, a sempre oferecer a outra face
E desde menino nunca recebi o lume de provar a verdade
De caligrafia e voz frágeis vivi a dúvida sobre minha arte
Obrigado a buscar acolhida no território oculto da noite
Sem, todavia, permitir a sombra se apossar de minh’alma
Hoje meu poema carrega selos de amargura e melancolia
É assim que minha voz há tanto escondida ora se espalha
Assim poder falar às cinco da tarde de fome e de desejo
Para ser violino, contudo soar muito mais como um oboé
Rebelar-se contra a tristeza qual um trem desgovernado
Espalhar arpejos iluminados por lembrar do amor que foi
E no litígio dos dias desaprender a odiar, é de novo abril
Não temer, prematuramente, pelo inferno ou um abismo
No final do caminho que antes caminhava olhando o céu
Amamos o que não temos, a areia escorrida pelos dedos
Nada se avista o que já ruiu detrás da névoa de outono
Então que vente o vento onde venta viva a tua memória
Na capa do poema onde teu nome, dourado, ainda vibra

quarta-feira, abril 2

Inodora

 

Ah, essa solidão que é feita de toda tua ausência
Um território irreversível toda vez que não estás
Que se cria quando a razão se faz de sentimento
Para delinear o contorno da realidade e do sonho
Esse purgatório que se gera em céus sem estrelas

Adoraria que os relógios parassem na madrugada
Antes que meu coração sangre na tua despedida
Que pudesses te render às armas do meu silêncio
Do meu olhar inundado que dispensa as palavras
Para assim me permitires de novo te enlouquecer

Queria alcançar a razão indecifrável de tuas idas
Abdicando da conveniência em favor da verdade
O porquê te vais se tua boca inda busca a minha
Se trazemos à tona, animal liberto, todo esse cio
Que nenhum labirinto de cimento pode esconder

Só o poema amainará a sina febril dessa ausência
Essa dor necessária, rosa inodora, pétala sem cor

terça-feira, abril 1

Meus Mortos

 
Os meus mortos e meus sonhos andam juntos
Grudados à escuridão que embirro em manter
No rebuliço dos ventos, um meio dia outonal
As cinzas espalhadas sobre o chão crestado
Meus mortos conheço-lhes, de cada, o nome
Sei que até transitam livres por meus versos
Cheiram à loção de barba alcoólica e barata
Os garfos e facas desemparelhados e tortos
Espalhados pelas gavetas da cozinha da casa
Meus mortos, sei-lhes qualidades e defeitos
Subversivos, circunspectos, solenes e outros
As gravatas desalinhadas sobre o terno azul
Um dia a morte nos recolherá para a solidão
Nos juntaremos todos, então, à fila da barca
Aquela mesma de nossos medos mais infantis