quinta-feira, julho 31

Poema errado

Se buscas construções tênues, mansas e contidas
Um texto acolhedor ou uma diagramação formal
Meu poema foge à simplicidade e à compreensão
Se pensas que posso te dar a obviedade d’um sim
Algo descompromissado, se queres não conteúdo
Tão só a capa expressiva seja qual for a proposta
Algo mais que vistoso, inconteste beleza exterior
Se aspiras à mesmice do outono, ao intenso verão
Saiba que sou o talvez do dia nubloso antes do sol
Se tu esperas algo possível entender de imediato
Uma simplicidade quase inocente, uma vida linear
Saiba que imponho nomes diferentes a cada coisa
Algo assim qual um beijo na tua parte mais íntima
Não por dever de ofício, antes teu absoluto prazer
E gozar no teu êxtase dando o benefício da dúvida
Se vale seguir vivendo ou morrer uma morte única
Imaginando não irás sentir novamente tanto prazer
Escrevo pela desordem do que possa ficar no lugar
Por querer saborear o infinito de dar tanto amor
No sonho vívido de ser eterno em um só instante
Embora, se desejas algo morno ou mais comedido
Lamento dizer que escolheste ler o poeta errado

 

terça-feira, julho 29

Desperdício

O sabor agridoce de teu beijo ainda recende na boca
Uma viagem, um enigma ou um fragmento do passado
Um olhar suplicante, sem cerimônia, invade os meus
Tal qual a luz de um farol que invade toda penumbra
São tantas sensações a inventariar e nada que baste
Nada que diga que não fui, intimamente, o teu servo
Mas que também usufruí teu corpo sem desperdício
Sei que o esquecimento virá para aplacar meu soluço
Os relógios cumprirão o mister a me tirar do espanto
Não aos passos solitários entre escombros, mas seguir
Erodir os caminhos da vida até vencer todos abismos
Depois, fingir que é noite, e tu, ao meu lado na relva
Fitando estrelas que já não cabem apenas em um céu
Ouvindo a sinfonia que vem de um distante azul véu
Pois que sei que o vento levará consigo toda tristeza
A irromper no silêncio apagando profundos lamentos
E na errância do dia venha a recitar ao pé d’ouvido
Este poema meu que é tão teu, tal teu amor foi meu

 


Trono

O vento dos tempos, inclemente, esculpe os rostos
Não há raízes possíveis que reconheçam o eterno
E tu que do trono do deslumbre me viravas o rosto
A imaginar que não havia vida venerável fora de ti
Cresça! Nunca nada foi teu. Percebestes os sinais?
A lua, o fogo crepitante, a alta solidão das estrelas
Crepúsculo irreal, destinos alheios, presentes vãos
Apenas tu imaginaste e te falo não para que chores
Aquele solo de saxofone que nem querias escutar
Em verdade não compus aos teus ouvidos seletivos
A sombra apenas me emprestara a música da noite
Tuas mãos já tão pálidas; onde eram rios, são ruínas
Essa vontade incontida de dormir, agora já o sabes
É o barqueiro que acerca-se e a moeda nas mãos
Assim como o poema, que já declamei não o fiz a ti
Tu partiste tantas vezes por obscuros caminhares
Mas de nada adianta fugir, é só um outro caminho
Saibas que de onde se partiu, foi sempre a chegada
 

quinta-feira, julho 24

Antes de ir-se

À aurora
Pés descalços
Quem a morte
Já derrotou
Odor a alfazema
A guerra
Um beijo na face
Condenados
Trinta dinheiros
O leito sonhado
Tremor na alcova
O que sucede
Uma despedida
A mão que agarra
Meia nádega
Antes de ir-se


Anoiteceu

Sob as sombras dos tempos, a imagem mansa do mar
Devolve-me todas as lembranças que guardei de ti
De tua pele desnuda rescendendo ao cheiro de sal
Dos teus olhos assombrados dos tempos ancestrais
Daqui tão longes, quando a alvorada afasta a noite
No chuvisco noturno débil e esquecido da história
O aroma dos lavandais recém cortados invade o ar
No perfume brilhante recordo-te trêmula de prazer
E o teu torso, opulento e macio, a respirar exausto
Num amor que juramos que jamais poderia terminar
Promessa ilusória, ceifada pela realidade da morte
Hoje é somente o mito ausente, por trás da névoa
Ah, como me entreguei inteiro a essas recordações
Quedei-me indefeso perante a dor de toda distância
Os ruídos cotidianos, a cidade irresgatável, estéril
Cicatriz corroída sob o linho que cobre os altares
Vejo-te na minha alucinação à porta da nossa casa
Vejo o sangue vertido no caminho, sobre o asfalto
Ao meio dia era sol, à uma, de dor o céu anoiteceu
À noite espero em silêncio, debalde, o teu retorno

 

quarta-feira, julho 16

Herança

O tempo depois de todo o tempo, por incontáveis eras
Dos séculos, das migrações, do vozerio à beira da água
Ainda me quedo à tua espera, coberto do pó da estrada
Tal marca indelével, uma cicatriz de vidas e de mortes
Velha procissão das gentes em seus vestidos coloridos
Eis-me aqui, depois de tudo, transmutado em essência
 
O sol nasce e se põe sem descanso, de tempos remotos
Crestando o calcário, fendendo suas alvas porosidades
Sigo por teus labirintos exercitando a minha pequenez
Na brevidade de mais uma vida, ansiando deixar marcas
Nas paredes, nos pátios, nos mais secretos cantos, a ti
Para que me vejas, na minha transparência quase aérea
 
Chego a este lugar, onde te espero desde todo o tempo
Nos territórios de meu secreto reino, local de mistérios
Onde emanam intocados, todos nossos primevos sonhos
Mas que percorro solitário, aguardando a tua chegada
A fim de destecer as teias dos que nos querem afastar
E por isso te chamo, sob a luz do sol que devora os dias
 
Teu nome foi escrito no sangue a me percorrer as veias
No quadro alegre da memória, ainda brincamos de viver
Entre os muros que limitam mais uma curta existência
Na vocação da espera o que meu peito sente incansável
Os olhos negam sem indulgência à caprichosa esperança
Nesta vigília que sei não virás e a dor é a única herança

 

Saga antiga

Um poeta esculpe pela noite os domínios do seu perfil
Percorre os salões além das casas sem portas da morte
Sobe e desce entre remotas ruas empinadas do centro
Corvo rubro do amanhecer, azul intenso que vem do sol
E ainda que seja só um homem, não há o que o defina
Sua alma finalmente liberta dos grilhões para onde irá
Último cárcere entre as brumas, último amalgama gris
Anjo remisso, quais marcos deixará antes da sua cova
Olha a fuligem sobre as telhas, onde o musgo prolifera
Nas gotas das chuvas que escorrem entre suas gretas
A que servem o estrume, os vermes, plantas e animais
Será o coração tão-só um músculo, não a casa do amor
Todo lugar é apenas mais um lugar, uma outra canção
A vida é uma viagem, um permanente desatar de laços
Minúscula gota de sangue, diluída no escuro da noite
Mas agora é noite e nas noites há que se beber o vinho
Hora de esquecer das cinzas e, enfim, curar as mágoas
Como se pudesse, do nada, ungir cada uma das feridas

 


quinta-feira, julho 10

Heróis

Olho a colina com minha melancólica alma ensanguentada
Estarão por toda parte os que me queiram mal nesta vida
É este o meu destino, enfrentar tantos punhais à espreita
A vida é 0 eco da morte, a borboleta exposta num alfinete
Heróis silentes e imaginários que se desfazem em pedaços
São feridas abertas num jogo de mortalidade sem sedução
Humilhados ou arrogantes, todos derramam sangue e suor
Nesse redemoinho sem esplendores que chamam de viver
Observo os fatos irônicos, fertilizados por essa realidade
O não equilíbrio de quem encalça com serenidade o vazio
Que se iludem a imaginar serem os encantadores de feras
Avatares sombrios despedaçados, negando a imortalidade
O silêncio da noite nega a existência de um amor gratuito
A busca do prazer, mas se encontra apenas impropérios
A paisagem desvanecida na penumbra é o que nos oferece
Corações prisioneiros no êxtase de seus peitos em chamas
Numa manifestação fortuita de toda realidade imprevista
Onde o tempo impreciso de sombras, escapava galopante
Montando em comoção espontânea, o cavalo dos sonhos

  

segunda-feira, julho 7

Pretexto

Não preciso de vãos pretextos para viver sem limites
Inobstante que meu coração lamente a tua ausência
Que tua figura tenha se perdido na fumaça dos dias
Chego a entender o desamor que limita certa gente
E tudo isso me faz escrever versos ao cair da tarde
Ouço ao longe um acordeom, o fole arfando de dor
Ouço o pássaro, sinto a brisa, os perfumes do verão
Certa vez construí um lugar contigo e éramos livres
Mas veio a tormenta, enlouquecida a deixaste entrar
Depois houve o nunca e a autora se perdeu na noite
Hoje teu corpo é naufrágio e não posso te encontrar
Lágrimas que escoam, banhando teus lábios de neon
Os dias correm velozes como nas corredeiras do rio
Benditos os aventureiros que fomos, sobreviventes
Desbravamos o grande labirinto, sem olhar para trás
Semeamos as sementes para reinarem quando árvores
Fomos avisados que não ficaríamos muito no paraíso
Assim escrevi um quadro, pintei um poema inovador
Depois será o silêncio, um vibrante e sonoro silêncio
De quem, ainda vivo e pleno, caminha entre os mortos
Rumando a outras terras, na luz tênue de um abraço