segunda-feira, setembro 1

Guerra e Paz

O trabalho reclama os dias, consome as horas, pela batalha do dever
Em líquidas memórias impacientes, buscamos a calma sem encontrar
Deixo o benefício da dúvida sobre as energias gastas dessa maneira
Segundo após segundo, são passadas horas em ponteiros deslizantes
E avançamos para quitar as últimas ações, em uma estranha tristeza
Numa vitória inventada, a tarde vem para renovar as outras nuances
Num mágico poente, quando o sol se retira e nos colocamos a pensar
E imaginar que podemos sentir o perfume estival das flores do campo
Mas o que anuncia a chegada da noite é o novo e desalmado inverno
Eu que nem lembro ter visto o outono passar ou suas folhas abatidas
Penso que eu queria estar ao teu lado, sentir teus seios imponentes
Desatar-te dessas tuas vestes para chegarmos aos limites do mundo
Sentir o sangue fluindo no ritmo de pulsações aceleradas do coração
Quiçá fosse só uma espera para alongar o tempo, reduzir os espaços
Sob uma luz insinuante no quarto, espalharmos as roupas pelo chão
Chegar-me ao teu lado e aconchegar minhas coxas entre tuas coxas
Deslizar minhas mãos sobre tua pele, olvidar os edifícios e gravatas
Ser o sentimento exponenciado ao limite, partilhado só com os olhos
Conhecer-te como quem se olha ao espelho em admiração atemporal
Para quem veio da guerra do cotidiano, olvidar a selva de concreto
Assim eu declaro a paz, incondicional, para te dizer o prazer venceu

 


segunda-feira, agosto 25

Tão só poeta

Acordo sentindo-me tão distante e olho-me por dentro
A palavra brota em mim, sem raízes, lágrimas ou gritos
Antes, um poema intocado em mim mesmo, escondido
Um mundo terno que pensei criar à minha semelhança
Renascer, evoluir sem reclamos qual fruto do espírito
Sem usar das palavras para ferir a quem quer que seja
Apesar disso, nunca calar algo sutil, doa a quem doer
Papoulas sempre fiéis apontam rumos em meus sonhos
Homem ou pássaro sempre fui necessitado de carícias
Num mundo sempre feito com sangue, suor e lágrimas
Amei como se devia amar a quem nem sempre mereceria
E de qualquer forma nunca retribuído com proporção
Neste meu reinaugurado mundo não haverá melindres
Tudo impecável, uma vida urgente, sem algum ressabio
E um céu estrito onde todos os pássaros se sustentam
Não o eterno fora de mim, um universo desencontrado
Dentro de mim um exército de mim armado de sentido
Nunca mais um desterrado, ajoelhado ou rosto oculto
Contudo, consciente de que o poeta sempre andará só
Mas, plúrimo com versos que tocam pessoas e gerânios
Segurar estrelas com as mãos, dizer não a antigas faces
Um arcanjo e a caneta, não para ser herói, tão só poeta

 


sexta-feira, agosto 22

Solidão a Dois

Foi quase uma despedida comum, poderia ser natural
Contudo era para sempre, a última vez que ela sairia
Eu nem quis ir à porta para ter certeza que ela se ia
Passou por mim, como a desviar os olhos lacrimosos
Fingia nos lábios um sorriso, não fosse o leve tremor
Levava neles o sabor de meus beijos a noite passada
Levava mais partes de mim que eu poderia enumerar
Fragmentos de meu ser, no íntimo, nas coxas e seios
Acreditava levar, qual de hábito, as todas respostas
Contudo, levaria mesmo as perguntas irrespondidas
Deixando um rastro de perfume a invadir-me a alma
Fingíamos que podia ser singelo, sem alguma emoção
Deixou signos de si mesma, tatuados em toda parte
Apartados do oblívio, quando cavalgava sobre mim
Sussurrando coisas irrepetíveis, inundada de prazer
Eu esvaziei, deliberadamente, todas as suas gavetas
Como se assim pudesse despi-la mais uma última vez
Ter sua nudez molhada de novo por toda minha pele
Deixaria ela para trás, todaa angústia e dúvidas vãs?
Mas não, o moto da partida residia na solidão a dois
Eu sempre estive presente, ela nunca quis enxergar
A porta do taxi fechou-se, deixei um soluço escapar


Livro Azul

Eu, antes era tal qual fosse alguma soma finita
Um rio de parcas margens, fluindo sem destino
No sombrio interior da noite quando te conheci
Por épocas reinventadas, em tempos imemoriais
Havia em mim uma existência de milhares de sóis
Nas ruas, o alaranjado tom nas folhas de bordo
 
Não um tempo linear, vivo no imaginário popular
Onde se empilham horas em dias, meses em anos
Mas o tempo desespero de toda a tua ausência
E tu, qual que estivesses num universo paralelo
Diametral a minhas aspirações, a minha angústia
Subsistias alheia a tudo, respirando a minha luz
 
As partículas da margem delirante de meu caos
Fizeram sufocar o anseio de tocar tua armadura
Eis que asas emergiram-me às costas, então voei
Consumi o fogo, toquei o futuro, me fiz invisível
Sem pretender ser rude, abdiquei de teus beijos
Para cercar o peito com um muro de neurônios
 
Não és mais meu universo, tampouco um oceano
Mas gotas que escapam se tento agarrar a chuva
Mas gotas que escapam se tento agarrar a chuva
Tornei-me a espiral fugitiva, não te gravito mais
Mesmo que conserve a memória de tuas pupilas
Descobri que a dor, ora tem limites fora de mim
E assim escrevi este poema no livro azul da vida

  

terça-feira, agosto 19

Xituculumucumba

Minha poesia anda nua, pelas paredes pichadas dos guetos
E a polícia que, qual a noite invade o dia, invade as casas
Minha poesia anda crua nas ruas invarridas das metrópoles
De asfalto, de metal e concreto, sem árvores, mas gasolina
Minha poesia que é tão tua, caminhando ébria à beira-mar
Onde a onda que murmureja, beija as areias em seu ir e vir
Minha poesia sob a lua, mira o soldado que segura o fuzil
Com o olhar atento, pelas emboscadas sofridas nesta vida
Minha poesia não se amua, diante dos revezes cotidianos
Ergue a guarda, olhos nos olhos e se vai na estrada afora
Minha poesia ainda flutua, esteira de luz pela imensidão
No gesto sábio do pescador que, lento, atira a rede ao mar
Minha poesia não recua, antes é o grito do recém-nascido
Ou o tropel das manadas, d’algum canto triste na senzala
Minha poesia se situa, dentro do peito, atrás do coração
No frio da floresta escura, o trêmulo som do lobo a uivar
Minha poesia se insinua no olhar esquivo da garota ruiva
De sardas, na loja da esquina, rosas-de-gueldres a bordar
Minha poesia se perpetua em folhas de árvores no pomar
Brilhando ao rosear das mangas e avermelhar das maças
Minha poesia anda nua, despida do silêncio e incansável
Minha poesia anda nua, despida do silêncio e incansável
Graciosa e esplêndida, na incontida insistência de viver

quinta-feira, agosto 7

Bom dia

 O dia nasce indefeso
Olvidando as cicatrizes
E os instantes oblíquos
Para raiarem vocábulos
Dessas noites tão frias
Em vales de incerteza
Da dimensão do real
No sonho remanescem
Pencas de horizontes
E esse silêncio da voz
Não faz calar na alma
Um desfile de palavras
Sequiosas de voarem
Sob o sol que as saúda
Entre flores no quintal

 

terça-feira, agosto 5

Poema mulher

As partículas invariáveis de traço dos meus poemas
O motivo é sempre a mulher e o seu cruzar de pernas
Na intensidade que muda, por conta de quais ângulos
E da fantasia de quais portais se abrem aos sentidos
A se espalhar como destroços de antigo naufrágio
 
Enquanto há uma pretensa penumbra a limitar o céu
As paredes da sala se diluem entre olhares brilhantes
O fato gerador das minhas mais eruditas expressões
Diametralmente opostas ao reino de certezas líricas
A seda nunca fez sentido até que eu senti sua pele
 
A mulher na horizontal invade as minhas estruturas
E me fazer conjugar os meus verbos mais irregulares
Livre de funções sintáticas, sou todo concordância
O que são letras frias comparadas à beleza feminina
Ou as infinitas estrelas do céu diante de sua nudez
 
Perco os substantivos, os gêneros e mesmo pronomes
Exceto ‘minha’ que faço por chamá-la noite adentro
Atravesso as fronteiras do querer, predicado verbal
Sua boca rubra e tão suave textura são a expressão
Entre artigos e numerais, é o meu refúgio do tempo
 
Chamam-te mulher, mas és o berço de toda a poesia
Monólogo da plenitude mais que perfeita da palavra