sexta-feira, junho 27

Vaivém

Anos passados, eu a encontro ao acaso, ela parece me sorrir
Decido, destarte, por falar de coisas triviais, coisas outras
Nada digo sobre seu perfume, apesar desta noite enevoada
Uma sensação de umidade, a lua ocultada, estrelas alheias
Não será conversa sobre o passado, penso falar de futebol
Isso evitaria abraços e distrações. O que houve foi silêncio
Os ruídos noturnos nos levam ao sofá, contudo o ar gelado
Nos aproxima um tanto a mais que a prudência recomenda
Na chaleira a água vai além do morno, ferve a fazer o café
Não, não pergunte, nem me diga que sente pelo acontecido
Faço uma pausa, escolho outra música para tocar, creio eu
O relógio tiquetaqueia por minutos que se somam em horas
O tempo não se distribui na medida de nossas necessidades
Sabemos o que isso pode fazer-nos (e nem é preciso dizer)
Não importam porquês, a roda do tempo não retorna atrás
Ela deixa sua blusa semiaberta, vê-se a volúpia em sua boca
Nas respostas do que não se perguntou e não se quer saber
Acaso tu te atreves? Atrevo eu, solto o cordão do sapato
Ponho descalços os pés, faço-os tocarem de leve nos seus
Curiosamente ela murmura uma canção antiga, eu conheço
Porque o fazes assim, fica tão difícil não desnudá-la, penso
Carreguei sua foto na carteira por mais tempo que queria
Quando me dou conta já esfregas aquela tatuagem em mim
Ela se adere ao meu peito, sobre todas as cicatrizes de ti
Sinto o calor de teus seios hígidos me roçarem em vaivém
Já não há mais o que fazer, outra vez restamos apenas um
Entre as cobertas, dizes que não queres falar sobre nada
Então que queres que eu faça se tu me olhas com paixão
Além de te tomar em mim, sem ponderar as consequências
Imagino que tu fizeste de caso pensado, mas nem importa
Lá fora a neblina já deu lugar à chuva, não pretendo sair

segunda-feira, junho 23

A palavra proibida

 

Perdemos a noção do tempo
A última lâmpada já não luze mais
As sombras são em multidões
Se achas que nos calou a voz
É porque te parecemos longe
Viva está a palavra que resta
E que ninguém se iluda
Os que se acham vitoriosos
O murmúrio vai elevando o tom
Dobra o silêncio a cada esquina
E segue de braço em braço
O rosto que eles nunca viram
Gatos pardos na noite, afinal
O que é proibido, não mais será
De resto, sobreviveremos
E a palavra jamais proibida

Ode a Van Gogh

 Meu coração endurecido guarda lembrança de voar
Como se isso pudesse me guiar ao fim de um outono
Prevenir-me dessas belezas vazias, não por faltar a
Mas pela ausência de ventos que marquem a direção
Para contornar as melancolias e memórias provisórias
Qual o talismã que me proteja da traição dos infiéis
Ultrapassar os muros nessa fuga das dobras dos dias
 
Partir em meio à insônia de cálidos tempos tropicais
Na inevitável cegueira de todo poeta diante do amor
Assim como sua inútil e imortal esperança no melhor
Ser o cão dócil, de alma gentil ferido por ser franco
Quero semear flores pela orla desta estrada agreste
Onde pousarão as mariposas, cientes de evitar a luz
Caminharão à minha sombra e ouvirei seus lamentos
 
A escuridão em nossa face, nosso medo tão antigo
Às vezes imagino, em verdade, não existir um mundo
Apenas seguimos numa batalha interminável pela luz
Ou talvez bailarinos, que desnudos, buscam a manhã
No sonho, obstinados versos brotam em minha mão
Como os girassóis de Vincent, na primeira luz do sol
Dispo os farrapos, visto o poema novo ali na esquina

segunda-feira, junho 16

Fevereiro

 
Então, os olhos que fizeram morada de tantas lágrimas
Calaram-se qual a tempestade que se despiu dos ventos
Como o pássaro que, engaiolado, abdicou de seu canto
O tempo consumado se saciou na quietude dos minutos
E assim estes olhos passaram muito tempo adormecidos
Numa tarde de outono, era quase noitinha e ela chegou
No meu peito ferido, cicatrizes vibram com sua chegada
Vestia branco, como a verdade que brilha nas clareiras
Abriu a porta para o pássaro voar e ele não foi embora
Antes, lhe pousou no ombro e afinal ali pôde descansar
Um silêncio de céu, mar e luz, um silêncio transluzente
Sob essa luz o pássaro segredou cantos no ouvido dela
E com a ponta dos dedos, esquadrinhou a sua geografia
Sobre suas asas de almíscar, brilhou uma luz lápis-lazúli
As criaturas da terra veem os ponteiros mirarem o céu
Meio-dia é consumado, chegou a hora de colher frutos
O sol cintila sobre o chão crestado, ainda é tão deserto
E a luz dispersa as sombras reunidas à noite, sob a cama
De um sono fustigado e sem sonhos, é preciso acordar
Dar-se conta de que habitava um continente de cegos
E a mentira nutria os espelhos desse mundo sem portas
Empertigo-me na cadeira, a pulsação tranquila e ritmada
Confesso que sei, a morte pode vir no azul do horizonte
Viro a página, risco um poema, afinal
, já não é fevereiro

terça-feira, junho 3

Contrapontos

A poesia por vezes é o triste oboé, outras o jovial trompete
O poema exercita as sombras nesses sopros, no escuro véu
Tão seco e plúmbeo, avaro de doçuras, em antigos lençóis
Será a morte laboriosa silenciosa num amargo céu de junho
O verso não basta, amar é pouco, nesse galope desvairado
Somos uma densa fábrica de tristezas nesse outono febril
E tudo que resta é desterro, bordado de parcas memórias
Contudo se bem olharmos o moinho da vida, veremos vida
Qual se não morrêssemos amanhã, não morreríamos jamais
Além dos trovões que nos assaltam nas noites de pesadelo
Se provermos os ouvidos abertos virá um som de concerto
Com seus timbres que fazem vibrar os alicerces do silêncio
Mil lâmpadas se acenderão, tramando entre velhos retratos
Pela volta da luz como nunca, em busca de claras memórias
Menos ácidas, entre tantas, nas gavetas azuis do cotidiano
Enfim o poema eclodirá, renascido no amor reencontrado
Nunca mais seremos os mesmos a brilhar na luz do destino
 

domingo, junho 1

Sabedoria

A sabedoria outonal derrubou as últimas folhas rubras
Restou a saudade dos perfumes dos lilases dos anseios
De bocas céticas, de tantas palavras de veludo e cetim
Dos anos passados são tantos os amigos que já partiram
Da nossa tão distante antiga infância restaram suspiros
De crianças que brincavam ao redor dos pés de frutas
Ou de cada letra mal soletrada na palavra elucubração
O sussurro musical daquele rock que meu pai proibira
A relva já seca resplandecia aos reflexos do sol poente
Foi então que descobri, ao acaso, o despertar do amor
Foi então que descobri, ao acaso, a morte inesgotável
E mesmo as cobras que inadvertidamente acariciamos
O vinho e o vento guardam as lembranças adormecidas
Meu olhar errante aos campos de cogumelos e malvas
O júbilo do saxofone a me sorrir pela estrada de seixos
Muito além da encruzilhada onde enfim nos calaremos
Terá o poema e sua foice dourada ceifando caprichos
Ainda que o inverno venha, e virá, inexorável e severo
Nos jardins de lua é hora de sonhar sem ressentimento

 

Desterro

Esse meu desterro permeável, semi-sedentário e surreal
Nele, as palavras se misturam aos lugares que nunca fui
Onde ocorrem as circunstâncias daquilo que nunca vivi
Mas que sinto na minha carne, qual uma saudade porosa
A arte tem essa aura de resgatar memórias inexplicadas
Eu, o romântico concreto, incabido em notas didáticas
Vejo que o dia, entre o céu e o almoço, lambe o tempo
A boca vivente, dois ouvidos em meio ao silêncio abissal
Que deseja, contudo, derruir os frios muros à sua volta
Expor, atrás das máscaras, as inocentes faces de mentir
Estendo as asas imprescindíveis para não deixar rastros
Apenas tanger um torpor imaginário, qual a névoa crua
Lentamente faróis incendiam os rostos dos automóveis
Vejo-os num suspiro p’las janelas abertas pra Via-Láctea
É o anoitecer que nos lança um olhar inteligente a mais
O grilo que, sobre o ombro direito, canta suas crônicas
O dia enfim dissipa e restam homens livres da aparência
Resplandece o céu detrás de todas as máscaras caídas
O que se houve compreendido já não existe neste chão
Um pássaro não confunde o vento em sua nua verdade