quinta-feira, novembro 14

Café da Manhã

E assim a distância suspirou arranhando as fronteiras do céu
Entre pilhas de papeis alvos onde virão a frutificar os poemas
Velozes estilhaços entre as mãos, flores multicores do jardim
Ouço o som cálido do teu feitiço entre lençóis e sinto-me só
No silencioso ato de lembrar-me de ti, de semanas a semanas
Atormentado na linha do mistério, na parte sutil do devaneio
Ao longe te contemplava, o teu perfume inundando as horas
Reviro minhas gavetas cotidianas para que devolvam a calma
Para rever teu o sorriso perturbador, cachecol xadrez solto
Qual os canteiros verde-escuros e seus malmequeres ocultos
Busquei a verdade como quem ouviu o som da chuva caindo
Mas o sol luziu na sacada sobre a roupa pendurada no varal
Senti-me um estrangeiro neste mundo de colarinho engomado
Camisas de brancos virgens, que guardam tão pouco de mim
Mas amo teus lábios de papoulas que me saúdam sem limite
São o ópio que me entorpece, o porto seguro de meu abrigo
Os anjos sussurram-me arcanos nesta noite em que te recrio
Na minha linguagem de palavras sombrias, de bolas de cristal
Passo a passo, enfim compreendo tua necessidade de ir e vir
Porém hoje te vim buscar, já não me basta te ver num sonho
Quero o calor de nossa cama indormida até o café da manhã

 


terça-feira, novembro 12

O Segredo da Lua

A tarde é um céu opaco na tristeza do entardecer
Impera um propício silêncio a preceder o temporal
Com o pensamento que germina em todas solidões
Minha voz nutre-se do alento, na memória do rosal
No tempo insone que separa a folha receber a flor
Nas voltas decompostas do relógio em turvas horas
A peculiar atmosfera enquanto se aguarda a chuva
As ideias me desertam na espera que a tarde impôs
A crueldade do calendário de saber tantos ontens
Mas a fugidia incerteza de que será algum amanhã
As nuvens, num esgar colérico, troam relâmpagos
Indiferente o ancião bafora seu corroto cachimbo
Cotovelos fincados na janela do outro lado da rua
Sob esfera celeste tão gris algo desgoverna em mim
Como poderia diante dessa tão refinada paisagem
Não sentir falta em assoladora e remota ausência
Não, não queria e nem vou dizer nada dessa falta
Porém nessa ardente flora que nasce da ausência
Não colherei flor alguma. A lua e seu porte grácil
Espalha sua luz pelo céu que as nuvens segredam


sexta-feira, novembro 8

Tuas Letras

Quando o inverno já apontava na instabilidade dos meus dias
Tu entraste em minha vida qual a neve no alto da cordilheira
Por mais que me recusasse, tu brilhaste em mim como um sol
Eu que era crepúsculo, minhas pétreas premissas desabaram
Quando me beijaste nos lábios ao vento noturno à beira-mar
A imagem de teus cabelos esvoaçantes não me sai da cabeça
Tuas carícias, qual fugidio vinho, percorrem minhas artérias
Sob a lua das ilusões minha voz recita versos até o alvorecer
E eu, vítima de teu feitiço, perdi-me no sonho de tua vinda
Teu incandescente beijo carmim que me fez ébrio de desejo
E desnorteia o coração que em meu peito palpita acelerado
Com tua pele de luz resplandecente a iluminar meu caminho
Chama incessante, assim viajo pelas dimensões de teu olhar
Minhas noites cintilam por ti e os astros e estrelas são tuas
Galáxias inteiras ou um único vagalume perdido, é só por ti
Este poema também é teu, afinal, és tu a razão destas letras

quinta-feira, novembro 7

Desafio

É tão fugaz e esquivo dar vida ao mistério das palavras
As poesias desde sempre entranhadas em meu coração
Mas nem assim me pertencem, assumo, mas me habitam
Numa vida que tive tanto que andar e de me desgarrar
Inquieto-me em poder dar ao bronze formas e essência
Súbito descubro que ao festim foi convidada a solidão
Faço com que a melancolia seja nada mais que desafio
Prosseguir jogando o jogo entre todas as minhas idades
Onde os pássaros cavalgam os ventos, acima das ondas
Abrir a janela, aspirar o campo, o cheiro de terra úmida
E recordar da brisa que se entremeia entre os arbustos
Mesmo quando dói trilhar pelo caminho da maturidade
Esquivando-se dos ritos, consultando signos e oráculos
Recorda hoje as vozes de outrora baterem à tua porta
Relembra da esperança amanhã, porque nunca foi fácil
Pois aqui estou como menino a cantar velhas canções
A sorver o novo poema, tal quem sorve a taça de vinho
O novo poema mais lúcido de um implacável anoitecer



terça-feira, outubro 29

Mutuamente

Corpos noturnos entrelaçados, artífices da memória e do desejo
Minha pele de homem, a tua pele de mulher em verdadeira nudez
Que nem a luz do sol, nem a fúria do oceano conseguiria separar
A terra toda silencia diante de nós, corpos tomados pela volúpia
Corpo e alma reunidos, juntos somos o melhor de nossa história
Reunidos somente por vontade, a nudez é a nossa maior lucidez
Meu corpo ereto amanhecendo no teu é o que me torna humano
Corpo nu que me acolhe, tua gruta onde vida e morte coexistem
A noite que aos olhos do mundo nos esconde não nos traz limite
Olhar no olhar, inscientes ao que nos rodeia, falamos em silêncio
Sentados frente a frente, num ininterrupto balanço de vai e vem
Nesse movimento tal um sonho, o abraço nos liberta das amarras
É a vida que cruza arcaicos limites, não mais oculto ou surpresa
Lá estamos nós a nos descobrir, qual paladinos do mutuo prazer

Herança

O crepúsculo é o triste estandarte de nosso adeus
É uma cidade distante onde mora o esquecimento
Mas em mim ainda tremula a flâmula de teu sorriso
Que tinha como mastro e morada esses teus lábios
Essa é a herança que me coube dos antigos verões
Onde tu eras o monumento que adornava o parque
Porém também eras a árvore com raízes na mentira
Onde tantos versos que plantei nunca viraram flor
E a porta do jardim, indefesa, continua entreaberta
Minha cabeça hospeda sonhos não compartilhados
Um madrigal no canto de azuis pássaros vespertinos
Mas a voz que quis ouvir, se fez tão só de silêncio
Caminhei tantos caminhos margeados de espinhos
As pessoas que achei, não disfarçam tua ausência
Hoje ouço um lamento remoto, sob o céu sem luar
Sei que é tua voz atônita, sombria, no ar de outono
Qual não ouvisse mais o vento que trazia os poemas
Que um dia foram teus, mas ora voam outros ares
Sei que teu olhar perdido não pode ver a paisagem
Redescobri em meu peito um novo mar de palavras
Onde teu barco, partido, já não pode mais navegar


domingo, outubro 27

Letras de Outrora

Bem cedo talvez meia noite o poeta empunha o lápis como adaga
Derrama sua dor no papel, ferindo-lhe a carne estéril em grafite
Usa de vestígios de um alfabeto inventado e renomeia a ilusão
Busca esquivar-se de alguma obscurescência aguda da memória
Afinal qual de nós teria um contador de sonhos atado no pulso
 
O ruído do cão roer uma cruz de madeira arranha meus ouvidos
Busco conforto, deito a cabeça em meu travesseiro de chumbo
Enterrado no pesadelo que não amanhece e as portas não abrem
Repousa no ar um rumor espertinado, o cão geme e eu o maldigo
Se a morte é certa e indecifrável já guardei a moeda de Caronte
 
Acordando de um sono profundo, deparo que o outono chegou
Não deixo que se envenene a esperança, um complô, um ataúde
Essas folhas vermelhas, por vezes as pérolas prateadas pelo céu
A hera emaranhada no salgueiro, os graciosos lírios perfumados
Porém, essa nostalgia de desejo vestida do uniforme dos séculos
 
É o mito que o beija flor canta, acende novo fogo, outra paixão
Permito que o astrolábio me guie nas idas e vindas às estrelas
A solidão é um engano, um tipo de feitiço, um simples impulso
Antes de ser um nome verdadeiro que se discerne de estar só
O poeta olha para si mesmo e reconhece que venceu no escuro
 
Tiro o pó das velhas cartas no fundo da gaveta desta dor eterna
Escondo-me entre as ruínas dos antigos gestos, ora congelados
Escreverei uma canção orlada de flores violentas e da palavra sol
Que o delírio da noite que amanhece, ouve, mas não a entende
Uma palavra tão além das letras de agora, verbo, terra e canto