quarta-feira, julho 16

Herança

O tempo depois de todo o tempo, por incontáveis eras
Dos séculos, das migrações, do vozerio à beira da água
Ainda me quedo à tua espera, coberto do pó da estrada
Tal marca indelével, uma cicatriz de vidas e de mortes
Velha procissão das gentes em seus vestidos coloridos
Eis-me aqui, depois de tudo, transmutado em essência
 
O sol nasce e se põe sem descanso, de tempos remotos
Crestando o calcário, fendendo suas alvas porosidades
Sigo por teus labirintos exercitando a minha pequenez
Na brevidade de mais uma vida, ansiando deixar marcas
Nas paredes, nos pátios, nos mais secretos cantos, a ti
Para que me vejas, na minha transparência quase aérea
 
Chego a este lugar, onde te espero desde todo o tempo
Nos territórios de meu secreto reino, local de mistérios
Onde emanam intocados, todos nossos primevos sonhos
Mas que percorro solitário, aguardando a tua chegada
A fim de destecer as teias dos que nos querem afastar
E por isso te chamo, sob a luz do sol que devora os dias
 
Teu nome foi escrito no sangue a me percorrer as veias
No quadro alegre da memória, ainda brincamos de viver
Entre os muros que limitam mais uma curta existência
Na vocação da espera o que meu peito sente incansável
Os olhos negam sem indulgência à caprichosa esperança
Nesta vigília que sei não virás e a dor é a única herança

 

Saga antiga

Um poeta esculpe pela noite os domínios do seu perfil
Percorre os salões além das casas sem portas da morte
Sobe e desce entre remotas ruas empinadas do centro
Corvo rubro do amanhecer, azul intenso que vem do sol
E ainda que seja só um homem, não há o que o defina
Sua alma finalmente liberta dos grilhões para onde irá
Último cárcere entre as brumas, último amalgama gris
Anjo remisso, quais marcos deixará antes da sua cova
Olha a fuligem sobre as telhas, onde o musgo prolifera
Nas gotas das chuvas que escorrem entre suas gretas
A que servem o estrume, os vermes, plantas e animais
Será o coração tão-só um músculo, não a casa do amor
Todo lugar é apenas mais um lugar, uma outra canção
A vida é uma viagem, um permanente desatar de laços
Minúscula gota de sangue, diluída no escuro da noite
Mas agora é noite e nas noites há que se beber o vinho
Hora de esquecer das cinzas e, enfim, curar as mágoas
Como se pudesse, do nada, ungir cada uma das feridas

 


quinta-feira, julho 10

Heróis

Olho a colina com minha melancólica alma ensanguentada
Estarão por toda parte os que me queiram mal nesta vida
É este o meu destino, enfrentar tantos punhais à espreita
A vida é 0 eco da morte, a borboleta exposta num alfinete
Heróis silentes e imaginários que se desfazem em pedaços
São feridas abertas num jogo de mortalidade sem sedução
Humilhados ou arrogantes, todos derramam sangue e suor
Nesse redemoinho sem esplendores que chamam de viver
Observo os fatos irônicos, fertilizados por essa realidade
O não equilíbrio de quem encalça com serenidade o vazio
Que se iludem a imaginar serem os encantadores de feras
Avatares sombrios despedaçados, negando a imortalidade
O silêncio da noite nega a existência de um amor gratuito
A busca do prazer, mas se encontra apenas impropérios
A paisagem desvanecida na penumbra é o que nos oferece
Corações prisioneiros no êxtase de seus peitos em chamas
Numa manifestação fortuita de toda realidade imprevista
Onde o tempo impreciso de sombras, escapava galopante
Montando em comoção espontânea, o cavalo dos sonhos

  

segunda-feira, julho 7

Pretexto

Não preciso de vãos pretextos para viver sem limites
Inobstante que meu coração lamente a tua ausência
Que tua figura tenha se perdido na fumaça dos dias
Chego a entender o desamor que limita certa gente
E tudo isso me faz escrever versos ao cair da tarde
Ouço ao longe um acordeom, o fole arfando de dor
Ouço o pássaro, sinto a brisa, os perfumes do verão
Certa vez construí um lugar contigo e éramos livres
Mas veio a tormenta, enlouquecida a deixaste entrar
Depois houve o nunca e a autora se perdeu na noite
Hoje teu corpo é naufrágio e não posso te encontrar
Lágrimas que escoam, banhando teus lábios de neon
Os dias correm velozes como nas corredeiras do rio
Benditos os aventureiros que fomos, sobreviventes
Desbravamos o grande labirinto, sem olhar para trás
Semeamos as sementes para reinarem quando árvores
Fomos avisados que não ficaríamos muito no paraíso
Assim escrevi um quadro, pintei um poema inovador
Depois será o silêncio, um vibrante e sonoro silêncio
De quem, ainda vivo e pleno, caminha entre os mortos
Rumando a outras terras, na luz tênue de um abraço

 

sexta-feira, junho 27

Vaivém

Anos passados, eu a encontro ao acaso, ela parece me sorrir
Decido, destarte, por falar de coisas triviais, coisas outras
Nada digo sobre seu perfume, apesar desta noite enevoada
Uma sensação de umidade, a lua ocultada, estrelas alheias
Não será conversa sobre o passado, penso falar de futebol
Isso evitaria abraços e distrações. O que houve foi silêncio
Os ruídos noturnos nos levam ao sofá, contudo o ar gelado
Nos aproxima um tanto a mais que a prudência recomenda
Na chaleira a água vai além do morno, ferve a fazer o café
Não, não pergunte, nem me diga que sente pelo acontecido
Faço uma pausa, escolho outra música para tocar, creio eu
O relógio tiquetaqueia por minutos que se somam em horas
O tempo não se distribui na medida de nossas necessidades
Sabemos o que isso pode fazer-nos (e nem é preciso dizer)
Não importam porquês, a roda do tempo não retorna atrás
Ela deixa sua blusa semiaberta, vê-se a volúpia em sua boca
Nas respostas do que não se perguntou e não se quer saber
Acaso tu te atreves? Atrevo eu, solto o cordão do sapato
Ponho descalços os pés, faço-os tocarem de leve nos seus
Curiosamente ela murmura uma canção antiga, eu conheço
Porque o fazes assim, fica tão difícil não desnudá-la, penso
Carreguei sua foto na carteira por mais tempo que queria
Quando me dou conta já esfregas aquela tatuagem em mim
Ela se adere ao meu peito, sobre todas as cicatrizes de ti
Sinto o calor de teus seios hígidos me roçarem em vaivém
Já não há mais o que fazer, outra vez restamos apenas um
Entre as cobertas, dizes que não queres falar sobre nada
Então que queres que eu faça se tu me olhas com paixão
Além de te tomar em mim, sem ponderar as consequências
Imagino que tu fizeste de caso pensado, mas nem importa
Lá fora a neblina já deu lugar à chuva, não pretendo sair

segunda-feira, junho 23

A palavra proibida

 

Perdemos a noção do tempo
A última lâmpada já não luze mais
As sombras são em multidões
Se achas que nos calou a voz
É porque te parecemos longe
Viva está a palavra que resta
E que ninguém se iluda
Os que se acham vitoriosos
O murmúrio vai elevando o tom
Dobra o silêncio a cada esquina
E segue de braço em braço
O rosto que eles nunca viram
Gatos pardos na noite, afinal
O que é proibido, não mais será
De resto, sobreviveremos
E a palavra jamais proibida

Ode a Van Gogh

 Meu coração endurecido guarda lembrança de voar
Como se isso pudesse me guiar ao fim de um outono
Prevenir-me dessas belezas vazias, não por faltar a
Mas pela ausência de ventos que marquem a direção
Para contornar as melancolias e memórias provisórias
Qual o talismã que me proteja da traição dos infiéis
Ultrapassar os muros nessa fuga das dobras dos dias
 
Partir em meio à insônia de cálidos tempos tropicais
Na inevitável cegueira de todo poeta diante do amor
Assim como sua inútil e imortal esperança no melhor
Ser o cão dócil, de alma gentil ferido por ser franco
Quero semear flores pela orla desta estrada agreste
Onde pousarão as mariposas, cientes de evitar a luz
Caminharão à minha sombra e ouvirei seus lamentos
 
A escuridão em nossa face, nosso medo tão antigo
Às vezes imagino, em verdade, não existir um mundo
Apenas seguimos numa batalha interminável pela luz
Ou talvez bailarinos, que desnudos, buscam a manhã
No sonho, obstinados versos brotam em minha mão
Como os girassóis de Vincent, na primeira luz do sol
Dispo os farrapos, visto o poema novo ali na esquina