segunda-feira, outubro 13

Rouxinol

Trago em mim todas lembranças da cidade da infância
Agora que o verde das estepes é apagado pelo outono
Ainda ouvimos, antes da noite, longe, o último lamento
Dos pássaros que reptam as planuras em suas rasantes
Lá ecoa, alto nesta estação do ano, os rumores do mar
Onde o ar recende ao odor de madeira e terra molhada
As luzes amarelas das casas nos dão a sensação de vida
Erguemos a face ao céu para sentir onde troa o trovão
E sem vê-los sei que os lobos correm pela noite sem luar
Lembro da namorada adolescente, não, nada foi em vão
De passear de mãos dadas por árvores floridas na praça
Será que essa inocência agora está tão distante de nós?
Há quem diga foram vozes perdidas no ar do entardecer
E que em vão se perscruta o pó em busca de algo antigo
O rouxinol, ao cantar ao pôr-do-sol, morto caiu do galho
Mas não eu não vejo assim, sei que os dias são preciosos
A última batida deste meu coração ainda não foi ouvida
Os mortos não têm sede
e tenho em mim a sede de amar

Na pele da noite

Entre as nuvens de gris, surge um singelo rasgo de azul
Qual a êxtase de uma flor sobre desertos de concreto
De ventos remotos que vêm a trazer ares de despedida
Nada depende de pretextos, de perguntas e respostas
O sol, alegria dos gestos, se derrama a causar novo dia
Os sentimentos confundem, ébrios de azul e cimento
Mas, há a quem o céu nunca abriu ou a porta na terra
Lamento por quem só vê pântanos e a palidez do nada
Flores murchas, aves confusas e inertes nuvens cinzas
Essa voz soará errante, até que o tempo se faça espaço
Na fiel lembrança de tempos outros e em outras cores
Olho ao longe o éter do olvido a girar em redemoinhos
Breve a tarde se fundirá na luz de loucos pensamentos
E pensar que ainda pode haver paz no afã destes dias
Que um dia aprendamos a viver livres e independentes
Que haja um lugar com amores sutis na seda da derme
Onde todas feridas convalesçam, sem deixar cicatrizes
O paradoxo de toda relatividade que cerca nossa vida
É que só escolhemos o que nos parece mais importante
Tal a estrela que não existe, mas luze na pele da noite

 


Glória

Não escrevo poemas para glória
O verso vive de vestígios de amor
O mirante vive à beira do abismo
O homem de barro quer a altura
A transparência num só impulso
Não quer reconhecer os sinais
O segredo que brande a espada
Em direção a seu peito, se move
Restará uma mancha de sangue
Na glória, a palavra do vencedor
No amor, o que pulsa na ferida
O amor é lenda, a glória a queda


quarta-feira, outubro 1

Paradoxais Paroxítonas

O quadro vazio
Nos ensina o medo
Falamos de claridade
Mas somos sombras
Suplicantes
Mesclados
Rostos que vêm
Rostos que vão
Signos de mistério
Vivemos a caçar
Mas somos a caça
Da noite
Do vinho
Cruzo pontes
Mas queria o abismo
Lemos a sangue frio
Escrevemos poesia
A mulher loira
Se inclina
Para cheirar a flor.

Raiz

Busco a raiz, a fonte geradora para um escrever justo e novo
Qual será o moto real da força vital que dizemos que é nossa
O que nos impulsiona e move todos dias quando nasce o sol
Lá fora, além da teia viva da cidade, sob o rigor geométrico
Luz e sombras transitam e iluminam meus versos renascidos
Eu, alheio aos ardis do dia, observo os precipícios da noite
Ouço passos femininos pela calçada, sob a janela do quarto
Um perfume airoso a se espalhar incógnito com a penumbra
Quem será que se aproxima pelo silencioso império noturno
Minhas mãos tateiam o fecho da janela e sinto o frio metal
Tranço os dedos e uma visão se faz livre, breve e reticente
Ela vem pela rua, figura entre o transparente e o encantado
Um fulgor único a iluminar a selva de concreto à sua volta
Qual toda uma constelação que pousa diante de meu olhar
Um arco de luz que deixa seu rastro em meio a antiga treva
Qual uma serpente em azul que, por espanto, se dirige a mim
Sua branda voz ecoa na madrugada e desperta a minha alma
Um singelo cumprimento, breve e aceso qual um relâmpago
Meus olhos fitam seu sorriso cristalino, lhe faço um aceno
Ela amplia o sorriso e a sigo com o olhar até virar a esquina
Contudo é o que basta à revoada de minhas aves notívagas
Que partem céleres querendo chegar antes dos raios de sol

 

 


Roman d'Amour Moderne

 Ao longe um apelo
Grito surdo abafado
Que persiste
Expira,
Espira,
Respira
Busca o infinito
Seu leito
Coração da noite
Abrigo
E o silêncio
Enorme
Tenho fome
Não demore
Teus lábios
E essa noite
Insanas trevas
Como consegues
Consciência
Consistência
Coincidência
Olhe, podes ir
Na boca, da noite,
eles se beijaram
se amaram e
disseram adeus
Sua vida
subitamente
seguiu quase
imperceptível

terça-feira, setembro 30

Aldebarã

Nos meus poemas, descrevi-me qual pássaro que plana
Sobre as árvores que propõem histórias sobre homens
Escrevi dos peixes e escamas coloridas que não tatuei
Da areia que construí castelos e um farol à beira-mar
Disse, não do que fiz, mas do que viram estas pupilas
Todos saídos de meus sonhos pelos caminhos da vida
Infinito sonho, oceano de imagens, meu autorretrato
Anotei palavras que não entendia para me entenderem
Voei sobre a selva e sob um céu entre nuvens, tão azul
Juro não foi por intenção, queria tãoser criança
Que aprende a ler e descobre um mundo nas palavras
Imaginando o que poderia existir acolá do horizonte
Volte a dormir, a voz me disse, mas eu queria acordar
Descobrir a imensidão que na ponta desta caneta
Seguir cada rota errante, por as cartas sobre a mesa
Crer que nem o sacrifício ou a cicatriz sejam em vão
Que estes rabiscos deitados sobre a folha do destino
São o que me tornaram o pássaro em voo a Aldebarã
Apaixonado, meio a ventos boreais, cantar o amanhã
E para afrontar aos incrédulos, ainda, ousar ser feliz