quinta-feira, outubro 30

Mergulho

 

Num tempo antigo vivi o desalento qual estrela cadente
Se agora não tenho mais o mesmo ímpeto da juventude
Meu coração é uma supernova a devorar a madrugada
A minh’alma desvirginada já não crê em verdades cegas
Meus olhos fitam os felinos caminhando pelos borques
Vejo a simetria perfeita das pequenas gotas de lágrimas
Os risos já não me comovem o coração, qual um dia foi
O tempo corre como um rio, a esgueirar entre as pedras
Ainda resta dentro de mim, uma substância de sombras
Que não se dissipa, se evapora para logo se fazer chuva
A noite, esse abismo de silêncio, entre gestos elétricos
Foi assim que aprendi em braile a ortografia dos corpos
E também a cultuar os beijos pela linguagem dos olhares
O comovente rito do tato que produz olhares famintos
O que importa seria descobrir qual é o momento exato
Para se dizer sim ou dizer não para comover o coração
Entro na noite qual o mergulhador entra no mar revolto
E uma vez submerso, sonho poder acabar com a solidão

 

quinta-feira, outubro 23

Viagem

A viagem se inicia com o abrir dos olhos, ao sul do lago
Sinto tua vibração em um tom de púrpura, quase seco
Por um desejo de sol, abro as asas, vejo abrires as tuas
Um céu nos é pouco, voamos em espirais sobre o jardim
Assim, conheço o destino que nos apresenta e nos une
Voltamos a ser crianças tocados pelo branco do silêncio
Antes, quis imaginar-te no meu sonho, cheia de volúpia
E te aninhavas nos meus braços, com esse olhar fugaz
Meio dia sob o sol, fiz-me deitar em teus seios rosados
Como duas ilhas num mar de júbilos aprecio teu corpo
De hermética geografia, vi reflexo do que é eternidade
Sou menino, caçador que descobriu mistérios de sereia
Ouço rumores de nossos corações, de absoluto prazer
Teus lábios junto aos meus, é meu maior dom literário
O mundo é o sonho fugidio das voltas de minha cabeça
E eu o olho do alto do pedestal que herdei das trevas
Nesses instantes é tu que és o meu poema, obra prima
Palavra de vida, em névoas azuis, clamo teu nome, amor

 


segunda-feira, outubro 13

Rouxinol

Trago em mim todas lembranças da cidade da infância
Agora que o verde das estepes é apagado pelo outono
Ainda ouvimos, antes da noite, longe, o último lamento
Dos pássaros que reptam as planuras em suas rasantes
Lá ecoa, alto nesta estação do ano, os rumores do mar
Onde o ar recende ao odor de madeira e terra molhada
As luzes amarelas das casas nos dão a sensação de vida
Erguemos a face ao céu para sentir onde troa o trovão
E sem vê-los sei que os lobos correm pela noite sem luar
Lembro da namorada adolescente, não, nada foi em vão
De passear de mãos dadas por árvores floridas na praça
Será que essa inocência agora está tão distante de nós?
Há quem diga foram vozes perdidas no ar do entardecer
E que em vão se perscruta o pó em busca de algo antigo
O rouxinol, ao cantar ao pôr-do-sol, morto caiu do galho
Mas não eu não vejo assim, sei que os dias são preciosos
A última batida deste meu coração ainda não foi ouvida
Os mortos não têm sede
e tenho em mim a sede de amar

Na pele da noite

Entre as nuvens de gris, surge um singelo rasgo de azul
Qual a êxtase de uma flor sobre desertos de concreto
De ventos remotos que vêm a trazer ares de despedida
Nada depende de pretextos, de perguntas e respostas
O sol, alegria dos gestos, se derrama a causar novo dia
Os sentimentos confundem, ébrios de azul e cimento
Mas, há a quem o céu nunca abriu ou a porta na terra
Lamento por quem só vê pântanos e a palidez do nada
Flores murchas, aves confusas e inertes nuvens cinzas
Essa voz soará errante, até que o tempo se faça espaço
Na fiel lembrança de tempos outros e em outras cores
Olho ao longe o éter do olvido a girar em redemoinhos
Breve a tarde se fundirá na luz de loucos pensamentos
E pensar que ainda pode haver paz no afã destes dias
Que um dia aprendamos a viver livres e independentes
Que haja um lugar com amores sutis na seda da derme
Onde todas feridas convalesçam, sem deixar cicatrizes
O paradoxo de toda relatividade que cerca nossa vida
É que só escolhemos o que nos parece mais importante
Tal a estrela que não existe, mas luze na pele da noite

 


Glória

Não escrevo poemas para glória
O verso vive de vestígios de amor
O mirante vive à beira do abismo
O homem de barro quer a altura
A transparência num só impulso
Não quer reconhecer os sinais
O segredo que brande a espada
Em direção a seu peito, se move
Restará uma mancha de sangue
Na glória, a palavra do vencedor
No amor, o que pulsa na ferida
O amor é lenda, a glória a queda


quarta-feira, outubro 1

Paradoxais Paroxítonas

O quadro vazio
Nos ensina o medo
Falamos de claridade
Mas somos sombras
Suplicantes
Mesclados
Rostos que vêm
Rostos que vão
Signos de mistério
Vivemos a caçar
Mas somos a caça
Da noite
Do vinho
Cruzo pontes
Mas queria o abismo
Lemos a sangue frio
Escrevemos poesia
A mulher loira
Se inclina
Para cheirar a flor.

Raiz

Busco a raiz, a fonte geradora para um escrever justo e novo
Qual será o moto real da força vital que dizemos que é nossa
O que nos impulsiona e move todos dias quando nasce o sol
Lá fora, além da teia viva da cidade, sob o rigor geométrico
Luz e sombras transitam e iluminam meus versos renascidos
Eu, alheio aos ardis do dia, observo os precipícios da noite
Ouço passos femininos pela calçada, sob a janela do quarto
Um perfume airoso a se espalhar incógnito com a penumbra
Quem será que se aproxima pelo silencioso império noturno
Minhas mãos tateiam o fecho da janela e sinto o frio metal
Tranço os dedos e uma visão se faz livre, breve e reticente
Ela vem pela rua, figura entre o transparente e o encantado
Um fulgor único a iluminar a selva de concreto à sua volta
Qual toda uma constelação que pousa diante de meu olhar
Um arco de luz que deixa seu rastro em meio a antiga treva
Qual uma serpente em azul que, por espanto, se dirige a mim
Sua branda voz ecoa na madrugada e desperta a minha alma
Um singelo cumprimento, breve e aceso qual um relâmpago
Meus olhos fitam seu sorriso cristalino, lhe faço um aceno
Ela amplia o sorriso e a sigo com o olhar até virar a esquina
Contudo é o que basta à revoada de minhas aves notívagas
Que partem céleres querendo chegar antes dos raios de sol