terça-feira, dezembro 23

A fonte

 

Esse desassossego, essa palavra que brota na garganta
E caminha aos lábios como se quisesse saltar ao mundo
Mas se detém e permanece encarnada em meu silêncio
E o que chamam de poema, uma amorosa luta pela vida
Que outorgo ao mundo quando a dor assoma no peito
Raia irreverente da ponta de minha pena sobre o papel
Há de chegar o dia que todo esboço afinal amadureça
Sem afãs, mas rigorosamente antes que a morte vença
Que a palavra não seja um consolo, antes ecloda no ar
Como um canto, dessangre, chegue e torne o dia feliz
Que se descerrem as cortinas ao invisível, o impalpável
O poema faz magia em palavras, dia a dia, entusiasmo
Um narciso nascido de mim, contemporâneo, corporal
E as imagens se reflitam no espelho qual ecos distantes
O amor! Aí está o espelho, sempre perfeito, inapagável
De corpo inteiro, em toda dimensão, exato e mutante
A fonte de todas as palavras, gênese de meus poemas

 

sexta-feira, dezembro 12

Vertical

Não diga que escrevo um poema presumidamente vertical
Que não exibo orações devotas, de bondade e franqueza
Pueril engano de quem acredita que pode decodificá-los
Nada é tão só o que parece e oculta razões inquietantes
Aprendi a falar de dores, decepções e inocência perdida
Escrevo estrofes isentas de epigramas, plenas de sombras
A metáfora de quem venceu a morte e outros fantasmas
Os protagonistas dos medos cotidianos de tantos outros
São palavras graníticas, nascidas de complexas tormentas
Porém ainda falo de amor, não de avara lascívia da carne
Falo dos esplendores dos olhares, de vertigens eternizadas
Aquilo cuja aclaração, conduz a incertezas ainda maiores
O poema diz dos encontros tão casuais quão improváveis
Pelas inóspitas voltas do desejo, pelos itinerários da noite
Não escrevo sobre o trivial, mas o desvario insolente e nu
A sedução que só se consuma com os perfumes de rosas
Que etéreos e fugazes, deixam para trás apenas espinhos
O crepúsculo se acerca e povoa o dia de signos e sonhos
Nuvens sonambulas desfilam diante da luz pálida do luar
O que seria do poeta sem as cicatrizes de beijos perdidos
 


segunda-feira, dezembro 8

Hipnótica

Fecho os olhos e o negror de teus beijos me hipnotiza
Como se a noite, em uma onda, se aglutinasse em mim
Um momento intemporal que me sussurras ao ouvido
Excitando todas minhas moléculas a desafiar a física
Meu menino interior grita silencioso em sua fantasia
Nasci numa cidade distante e seus credos revelados
Um ônibus vermelho passou antecipado pela esquina
Teus olhos brilhantes a fitar os meus, me despertam
Imagens oníricas destas mãos que percorrem tua pele
Ignoro que poderias ter vivido inumeráveis destinos
Mas aqui estamos, dedos entrelaçados nesta volúpia
Em que te compartilho arcanos antes inconfessáveis
Qual se o eterno se consumasse num piscar de olhos
Neste minuto que a realidade se dissolve num abraço
Sob o céu gris sem estrelas és a minha alfa centauro
Fora da janela, fulgura o amarelo louco dos girassóis
Uma canção remota, por que é dezembro, soa no ar
Olho para ti, tua mística me envolve e quer de novo
Em nossa cálida intimidade, as noites se apequenam
A ave liberta regressa breve com o ramo de oliveira


terça-feira, dezembro 2

Rumores

Num dia que parece ter olvidado de amanhecer
O bêbado sujo ainda se põe sentado no meio-fio
Os transeuntes o ignoram qual se fosse invisível
O sinal estivera sempre fechado para os que vão
Penso que choveria lágrimas não fosse outubro
Negros gestos, indiferença, isso já nem importa
O cinzel que ensartou sem terminar de esculpir
A verruma afiada, mas nenhum furo para fazer
E agora? Quão as ferramentas eram insuspeitas
Todos os ruídos como que foram sequestrados
Tanto imaginei viver um dia peculiar como este
E eu, poeta por vocação e ofício, assisto a tudo
Não espero minha obra em exposição no Louvre
Fadada ao pó e tédio dos dias comumente iguais
E se agora tenho só as sombras de algum abraço
Nos ouvidos ainda me retumba o rumor de risos
E a visão de teu corpo nu tal deusa adormecida

domingo, novembro 16

O solitário

 O solitário se faz
De areia e chuva
Sonhos e adivinhas
Secretas palavras
O passado é o que
Constrói o futuro
De lembranças e
Parcas alegorias
Submerge na noite
Onde se purifica
Desafia o relógio
Abranda as horas
Flerta com a morte
Desposa a vida
Na água profunda
No píncaro azul
Desconhece a solidão
E o mundo que padeça


sábado, novembro 15

Lampião

 
No amanhecer da noite entre lençóis
Achego-te lânguida em meus braços
Tua figura envolvente meio à batalha
Ao pé do ouvido, me confessas amar
Sílaba que tu insinuas discreta e lenta
Na névoa oculta de silentes falsidades
Das cinzas olvidadas em dias passados
Desembainho a espada com um sorriso
E olho-te num quase vingativo silêncio
E assim tu perseveras a me fazer amor
Qual algemas em sentimentos binários
Teu corpo nu desdobrado no colchão
Lá fora, as sombras permeiam as ruas
Pela noite vazia, nenhum sinal de vida
Neste meu abrigo, teu calor contagia
Sentimentos e prazeres se confundem
A porta permaneceu há muito aberta
Longos caminhos te trouxeram a mim
No amargo da ausência foste lua nova
Ora te derramas em vinho e esperança
E o velho lampião acende a eternidade

sexta-feira, novembro 7

Elétrico

 

Andava pelas ruas
Numa tarde elétrica
Relâmpagos ciscam
Entre nuvens cinzas
Olho as portas fechadas
Ausências na calçada
De repente música
De um rádio distante
Entre trovões e vento
A soprar folhas caídas
Lembro olhos meigos
Que brilham na janela
Mas repentinamente
Um raio tudo silencia
Chegando o entardecer
Um longo caminho
Nem sons, nem olhares
Foram-se tão breves
Para não mais voltar