segunda-feira, fevereiro 26

Abutres

A alvorada anuncia mais um dia de nuvens. A luminária do poste, vezeira de me acordar, tantas vezes sob protestos, às cinco e quarenta e cinco, insolitamente não acendeu. Teria o sol morrido?

Desci-me à sala de casa, onde escrevo meus poemas em seus pergaminhos.

Sentei-me junto a este instrumento de digitação. Alguns alfarrábios empoeirados se empilham sobre a mesa, que, rodeando esta máquina, assaltavam-me o pensamento. Os reconheço, um a um, esse semeadouro das minhas palavras. Palavras que quando me deixam insone, forçam-me a trazê-las e deposita-las aqui.

As traças escalando as paredes, aliam-se às teias luzentes sob a lâmpada, tudo observado pelo copo de café esquecido de ontem e ao cheiro de citronela para espantar mosquitos, parece que desejaram, por essa hora, me auxiliar.

As sombras sempre me acompanham. Se lá fora, o escuro se rasga nos lampejos dos trovões deste final de verão, aqui dentro, minha lembrança, retorna a dias outros.

Inobstante meu empenho em acalmar meus demônios interiores, como poeta ou pintor perante as respectivas matrizes em branco, a inquietude vence e resolvo escrever.

Devo iniciar narrando que nem importa esta rua, ou qualquer rua imersa na periferia que me encontro, cercado pelo lodo de tantos dias de chuva.

Composto o cenário, subverto-o para fingir que fosse um parque de verdes gramados, lagos plácidos e patinhos simpáticos a nadar; que no final de semana atrai centenas de frequentadores. Assim será possível ver famílias e seus jogos divertidos de bola nos gramados, cruzadas entre pipas que, fatalmente, acabam em brigas, prática seguida à risca. Mas antes de celebrar o liame desses mundos, no céu acima e indiferentes a todos, vão plainando os urubus.

Que bela coreografia de vultos, qual um sopro entre as nuvens, um bailado comovente. Pouco a pouco, sem externar vontade, meu olhar se magnetiza a um grupo que desce e pousa perto de mim.

Finjo não olhá-los voltando-me às árvores e os ventos, mas os ventos, como mensageiros melancólicos entre as árvores, roubam as folhas aos galhos, provocando um peculiar som, para derrubá-las ao chão, não sem antes dançarem no céu, imitando os urubus.

Quanto mais o bando era revelado, mais era induzido a mirá-los.

Pouco mais à frente, a periferia de minha periferia, os voadores em seus trajes negros à rigor recriminam a atenção de minha presença solitária, sem pretensões aparentes, em direção ao nada.

As aves antes revoadas em círculos tão distantes, agora pousadas atemorizam-se com minha presença. Seus olhos refletiam raiva, a fome, a raiva da fome.

Mantive-me qual ausente, paralisado, observando. Havia pedaços de carne nos bicos e nas garras, disputada com afinco. Divisão justa entre eles? Ora! Não há. Há uma disputa ferrenha, onde uma saraivada de asas determina a supremacia de uns sobre os outros.

Cheguei a apanhar um par de pedras, mas contive-me com as pedras nas mãos. Com elas os poderia afastar, temporariamente. Escravos da fome, os abutres, logo me afastariam. Aproximei-me. Viro minha atenção para a carne disputada. Com assombro não era de um rato ou gato, levando consigo a dor da curta vida de seu destino; nem as sobras da limpeza de peixes, da vila ao lado. Não era um animal à sua sorte, abandonado. A carne ali apodrecendo era de um homem.

Uma imagem apenas, porém, como pode guardar tal repugnância em mim. Um homem nu ou quase nu, com alguma peça, verde ou quase azul, sendo concorrido pelos bicos poderosos dessas hienas aladas. Emudecido, calei. Algum tempo depois, ao fato tornado público, as pessoas sempre vieram com a justificativa pretensamente consoladora de que era um bandido ou só poderia ser. Mas não, poderia ser um amigo que a vida torta meteu numa encruzilhada entre a polícia e o tráfico e que ora jaz esticado no asfalto? Os ocasos sucessivos apagarão essas lembranças, mas jamais nos responderá porque a luminária do poste escolhe aleatoriamente acender-se ou não?


Nenhum comentário:

Postar um comentário