terça-feira, maio 30

Estação

No banco da estação numa tarde de sol a pino

Recosto-me na sombra macia das tuas palavras

Leio o livro que conta segredos em teus lábios

E sussurras carícias na língua em que me falas

Dialogas com o olhar, ébrio deixo que me leves

Bebo, pouco a pouco, as verdades inconfessas

no mar de tua boca que embriaga minhas mãos

Que murmuram ocultos vocábulos com o tato

No teu pequeno barco transportas meu alento

Diviso teu corpo sem mapa nas rotas do tempo

Já nem importa o rumo que este barco me leve

Vamos de sonho em sonho a buscar horizontes

Sob um céu onde o ar tépido enleia preguiçoso

E todos os pássaros vêm cantar com minha voz

Qual no dia que, nos ninhos, já não chove mais

Na esperança que tu os ouças nos meus lábios

Seguimos aliviados e ligeiros ao trem que passa

Transportados de ida e de volta, sem passagem

A fumaça do trem que parte apita viva e louca

Pelos trilhos que nos levam conhecer o infinito

segunda-feira, maio 29

Tragédia

Porque torno a te escrever se teus olhos verdes não irão ler
Pois não se trata de escrever o que fomos tu e eu, certo dia
Fosse pela tragédia de alguém que contasse alguma história
Mas sou eu o que amanhece de olhos úmidos a cada manhã
Como me pesa ter as asas úmidas, como me pesa esta pena
Minha tragédia, razão do abismo, foi não poder despedir-me
Não poder como a quem parte, desejar boa ventura, vá bem
Foi apenas um adeus caprichoso, mas que nem mais importa
 
Não se conhece o que há depois da morte, qual sorte d’alma
E depois que fechastes os olhos, ainda há cor? Ou há rumo?
Aqui a tragédia decora o quadro e a caminhada fica tortuosa
A lembrança é uma síntese vermelha, cravos sobre as águas
No papel manchas negras para ocultar essa dor sem sentido
E volta-se ao velho livro já lido uma e outra vez e mais vezes
Que mesmo assim vai murchando qual secam as flores rosas
Na paisagem crestada que, então, tem orlado minha estrada
 
Com remos de palavras venho remando entre ondas escuras
E as sombras podem se confundir com o alento e com flores
As flores que se alimentam de lágrimas, sem nunca ter nome
Dos nomes e nomes que eu disse depois e só chamei o vazio
Por vezes os poetas inventam palavras e as palavras mentem
Ouvi teu nome e não estavas quando a morte bateu à porta
A lembrança é a síntese de tudo, do olfato, do gosto, da pele
É também da tragédia, o dia seguinte que jamais se quis ver


domingo, maio 28

Hai-Kai

 

Um quadro!
São as flores da prímula
quando tremula

Floral dissolvido
pelo vento perdido
vagam sem fim

Suavemente
caem gotas de chuva
em minha janela

quinta-feira, maio 25

Bom dia

Escutava-se um alarme obsceno e brevíssimo
Que insiste despertar-me com só uma palavra
Na simulação de uma amordaçada liberdade
Um ou dois sonhos suspeitos se fazem impor
Uma nada breve chuva que cai sobre acácias
O pesadelo vem visitar inusitadas geometrias
E hexâmetros perfilados na inutilidade diária
Vêm me resgatar da mesmice de certas linhas
A manteiga está fria, o orvalho cai em espiral
E sob a toalha, repleta de crocantes migalhas
Está a mesa onde virei rabiscar meus escritos
Ao jornal com pequenos espaços d’annunzios
Ainda se exige alguns bocejos antes do papel
Como a chuva, para essa insondável sucessão
Das manhãs de outono que vêm me roçando
Pressentidas, quase dolorosas e desgarradas
O cheiro peculiar do tisnado café indaga-me
Perscruta e cerca-me com mil braços de Kali
Eu lhe direi que é só do gozo que me lembro

terça-feira, maio 23

Alice no país da poesia (3 atos)

 
I
Arco-íris, diante dos olhos, pulsantes e a via-láctea na bainha
Magnitudes indistintas, meu sangue irriga a venturosa árvore
Na parte da noite que não brilha, o opaco a tingir suas águas
Um olho de luxo, outro simples, a água, o universo e este sol
Não é meu sol é o verde. O segredo da vida é o seu não estar
Estas meninas e seus corpos, teus copos, teu corpo cascavel
Folhas, ramos, flores, frutos de ouro essa é a nossa mortalha
Piam pássaros vermelhos, o cio em teus olhos vermelhos, zelo
Douradas prímulas, plúmbeas plúmulas mesclam luzes e olhos
Nestes traços que surgem no livro, à espreita atrás da cortina
II
Deixamos a raposa, as uvas e o lince voluptuoso, zooteca zero
Nos querem nus, a desatar os nós, um oásis ao pobre escriba
Signos ígneos negros, ocas marcas, ouriços, ouro, opacidade
Alegram-se com a letra que mancha o poema monogramático
Tudo de que te desfazes e dissipa no escândalo nu do sonho
Às vezes um rosto apagado, boquiaberto, um pássaro súbito
À noite na casa vazia sou o sapo que espera o beijo salvador
O dormir que não se dorme, mas esvoaça em ritmos ocultos
Despido de pé no chuveiro, meu permanente e ácido humor
Minha expressão imprecisa para um gorjeio mais prolongado
III
Há que se conhecer a morte e seu desejo de dureza infinita
Em plena alvorada, o que possa ter de consciência culpável
Olhamos a obra, tal algo incontido na erudição dos saberes
O livro, esse objeto apaixonado, se amplia se impõe e reduz
O que há de confuso em um breve caos não é amordaçável
A liberdade viva é um déjà vu, o recorte de cenas obscuras
A serpente que acena ao falcão lá acima um pacto de viver
Devemos permanecer sempre crianças e mais que um sonho
Quando se decline o nome do gato, o gato salte sobre o muro
Despido ao chuveiro, vou desdobrar meu punhado de sílabas
Tecer à mesa do café encantadas imagens, dar início à manhã

segunda-feira, maio 22

Festa nos Campos

 

Houve, há tempos, nos campos da minha vida uma primavera
Vivia-se toda a ânsia que o entardecer poderia nos oferecer
Cada rosa não era apenas uma rosa senão a beleza realizada
Caminhei para essa festa vestido com meu melhor traje azul
Mas ao chegar as luzes já apagavam e não havia mais a festa
Um odor de perfume finado flutuava no ar da noite deserta
Havia pessoas, as pessoas assim proferiam palavras dispersas
Eu fui-me pela vida, uns falavam de justiça, outros de glória
Alguns sabiam nomear as estrelas ou diziam palavras solenes
Eu que queria as palavras sensatas apenas ouvi más palavras
Havia livros aonde havia palavras de uma poesia já sepultada
Livros de uma ciência em que todas as noites foram eternas
Sem qualquer luz nos olhos, mãos envelhecidas e isso é tudo
Caminhei para a festa do mundo, mas luzes se iam apagando
Era de campos verdes onde despontou a primeira primavera
E a alma que de tudo era mais pura, era mais só e mais triste
A ave que falava, a arvore que cantava, não se as ouve mais

sexta-feira, maio 19

A morte do silêncio

 
Desenho com o dedo tua sombra na sombra da noite
Para te reter em mim e guardar a tua lembrança nua
Essa flor despetalada no horizonte, diante da janela
Onde a lua, distante, desponta atrás das montanhas
E os meus olhos vão te buscar, te achar e te admirar
Sinto teu palpitar na solitude aparente deste abismo
Onde um pássaro voa e cruza o céu. Grito teu nome
Foi assim que vieste e me apunhalaste com teu amor
Trespassando meu coração e assim me furtar a alma
Para te estenderes por meu corpo até que te habite
Com meus pássaros selvagens indomados e famintos
E o desejo liberto no ar invadir os espaços do vento
E o manto de noite restar pleno de signos e carícias
A névoa é o olvido e a insônia transborda qual o rio
Que o calor de tanta loucura transforma em chuva
Devolvendo à vida o fruto que um dia fora semente
Na calçada o silêncio jaz abatido em teus sussurros

quinta-feira, maio 18

Noturno 6.8

 

A fria imagem de mármore cinzelado, imitando pássaro
Que pulsa na paisagem qual o conluio entre dois reinos
Amanhece em meio à chuva neste tempo de lembrança
Ao qual o poeta reconhece, mas nem sempre o realizou
 
Ser fulgurante outrora nascido sob o manto dos astros
Sua cintilação conduz-se no negro voo no seio da noite
A nostalgia realça seu brilho e vem para inaugurar a luz
Perpassa o ouro em suas palavras, qual o fogo da ilusão
 
O pensamento que jazia adormecido, ressuscita seu ser
O lobo que sempre alimentou e com quem viveu em paz
Na visão interior de modo ambíguo em fumos de alegria
Imagem de um sonho que se esquiva de toda a ausência
 
Guarda um jeito perturbado, tanto áspero pela angústia
Ora a face mais serena, calada, ora o gárrulo, o espanto
De suas prédicas negras nos amargos versos cicatriciais
A sombra que invade o carvão do silêncio d’outros dias
 
Em meu voo solitário observo meus inimigos à distância
Os quais atraio com o suor de falas acesas e inflamadas
Aqui descortino meu ser, pelo avesso, meu avaro andar
A brandura que não ostento, como a todo corpo de pó
 
O tempo marca mais um momento de um zodíaco triste
Além dos campos áureos de trigais e lilases de alfazema
Em que o vento balouça novas hastes florais nesta vida
Em memórias onde também se agita alva roupa no varal
 
O abandono do pássaro pulverizado repetido outra vez
Nesta hora de um silêncio já cansado de tanta infância