terça-feira, agosto 19

Xituculumucumba

Minha poesia anda nua, pelas paredes pichadas dos guetos
E a polícia que, qual a noite invade o dia, invade as casas
Minha poesia anda crua nas ruas invarridas das metrópoles
De asfalto, de metal e concreto, sem árvores, mas gasolina
Minha poesia que é tão tua, caminhando ébria à beira-mar
Onde a onda que murmureja, beija as areias em seu ir e vir
Minha poesia sob a lua, mira o soldado que segura o fuzil
Com o olhar atento, pelas emboscadas sofridas nesta vida
Minha poesia não se amua, diante dos revezes cotidianos
Ergue a guarda, olhos nos olhos e se vai na estrada afora
Minha poesia ainda flutua, esteira de luz pela imensidão
No gesto sábio do pescador que, lento, atira a rede ao mar
Minha poesia não recua, antes é o grito do recém-nascido
Ou o tropel das manadas, d’algum canto triste na senzala
Minha poesia se situa, dentro do peito, atrás do coração
No frio da floresta escura, o trêmulo som do lobo a uivar
Minha poesia se insinua no olhar esquivo da garota ruiva
De sardas, na loja da esquina, rosas-de-gueldres a bordar
Minha poesia se perpetua em folhas de árvores no pomar
Brilhando ao rosear das mangas e avermelhar das maças
Minha poesia anda nua, despida do silêncio e incansável
Minha poesia anda nua, despida do silêncio e incansável
Graciosa e esplêndida, na incontida insistência de viver

quinta-feira, agosto 7

Bom dia

 O dia nasce indefeso
Olvidando as cicatrizes
E os instantes oblíquos
Para raiarem vocábulos
Dessas noites tão frias
Em vales de incerteza
Da dimensão do real
No sonho remanescem
Pencas de horizontes
E esse silêncio da voz
Não faz calar na alma
Um desfile de palavras
Sequiosas de voarem
Sob o sol que as saúda
Entre flores no quintal

 

terça-feira, agosto 5

Poema mulher

As partículas invariáveis de traço dos meus poemas
O motivo é sempre a mulher e o seu cruzar de pernas
Na intensidade que muda, por conta de quais ângulos
E da fantasia de quais portais se abrem aos sentidos
A se espalhar como destroços de antigo naufrágio
 
Enquanto há uma pretensa penumbra a limitar o céu
As paredes da sala se diluem entre olhares brilhantes
O fato gerador das minhas mais eruditas expressões
Diametralmente opostas ao reino de certezas líricas
A seda nunca fez sentido até que eu senti sua pele
 
A mulher na horizontal invade as minhas estruturas
E me fazer conjugar os meus verbos mais irregulares
Livre de funções sintáticas, sou todo concordância
O que são letras frias comparadas à beleza feminina
Ou as infinitas estrelas do céu diante de sua nudez
 
Perco os substantivos, os gêneros e mesmo pronomes
Exceto ‘minha’ que faço por chamá-la noite adentro
Atravesso as fronteiras do querer, predicado verbal
Sua boca rubra e tão suave textura são a expressão
Entre artigos e numerais, é o meu refúgio do tempo
 
Chamam-te mulher, mas és o berço de toda a poesia
Monólogo da plenitude mais que perfeita da palavra

 


quinta-feira, julho 31

Poema errado

Se buscas construções tênues, mansas e contidas
Um texto acolhedor ou uma diagramação formal
Meu poema foge à simplicidade e à compreensão
Se pensas que posso te dar a obviedade d’um sim
Algo descompromissado, se queres não conteúdo
Tão só a capa expressiva seja qual for a proposta
Algo mais que vistoso, inconteste beleza exterior
Se aspiras à mesmice do outono, ao intenso verão
Saiba que sou o talvez do dia nubloso antes do sol
Se tu esperas algo possível entender de imediato
Uma simplicidade quase inocente, uma vida linear
Saiba que imponho nomes diferentes a cada coisa
Algo assim qual um beijo na tua parte mais íntima
Não por dever de ofício, antes teu absoluto prazer
E gozar no teu êxtase dando o benefício da dúvida
Se vale seguir vivendo ou morrer uma morte única
Imaginando não irás sentir novamente tanto prazer
Escrevo pela desordem do que possa ficar no lugar
Por querer saborear o infinito de dar tanto amor
No sonho vívido de ser eterno em um só instante
Embora, se desejas algo morno ou mais comedido
Lamento dizer que escolheste ler o poeta errado

 

terça-feira, julho 29

Desperdício

O sabor agridoce de teu beijo ainda recende na boca
Uma viagem, um enigma ou um fragmento do passado
Um olhar suplicante, sem cerimônia, invade os meus
Tal qual a luz de um farol que invade toda penumbra
São tantas sensações a inventariar e nada que baste
Nada que diga que não fui, intimamente, o teu servo
Mas que também usufruí teu corpo sem desperdício
Sei que o esquecimento virá para aplacar meu soluço
Os relógios cumprirão o mister a me tirar do espanto
Não aos passos solitários entre escombros, mas seguir
Erodir os caminhos da vida até vencer todos abismos
Depois, fingir que é noite, e tu, ao meu lado na relva
Fitando estrelas que já não cabem apenas em um céu
Ouvindo a sinfonia que vem de um distante azul véu
Pois que sei que o vento levará consigo toda tristeza
A irromper no silêncio apagando profundos lamentos
E na errância do dia venha a recitar ao pé d’ouvido
Este poema meu que é tão teu, tal teu amor foi meu

 


Trono

O vento dos tempos, inclemente, esculpe os rostos
Não há raízes possíveis que reconheçam o eterno
E tu que do trono do deslumbre me viravas o rosto
A imaginar que não havia vida venerável fora de ti
Cresça! Nunca nada foi teu. Percebestes os sinais?
A lua, o fogo crepitante, a alta solidão das estrelas
Crepúsculo irreal, destinos alheios, presentes vãos
Apenas tu imaginaste e te falo não para que chores
Aquele solo de saxofone que nem querias escutar
Em verdade não compus aos teus ouvidos seletivos
A sombra apenas me emprestara a música da noite
Tuas mãos já tão pálidas; onde eram rios, são ruínas
Essa vontade incontida de dormir, agora já o sabes
É o barqueiro que acerca-se e a moeda nas mãos
Assim como o poema, que já declamei não o fiz a ti
Tu partiste tantas vezes por obscuros caminhares
Mas de nada adianta fugir, é só um outro caminho
Saibas que de onde se partiu, foi sempre a chegada
 

quinta-feira, julho 24

Antes de ir-se

À aurora
Pés descalços
Quem a morte
Já derrotou
Odor a alfazema
A guerra
Um beijo na face
Condenados
Trinta dinheiros
O leito sonhado
Tremor na alcova
O que sucede
Uma despedida
A mão que agarra
Meia nádega
Antes de ir-se


Anoiteceu

Sob as sombras dos tempos, a imagem mansa do mar
Devolve-me todas as lembranças que guardei de ti
De tua pele desnuda rescendendo ao cheiro de sal
Dos teus olhos assombrados dos tempos ancestrais
Daqui tão longes, quando a alvorada afasta a noite
No chuvisco noturno débil e esquecido da história
O aroma dos lavandais recém cortados invade o ar
No perfume brilhante recordo-te trêmula de prazer
E o teu torso, opulento e macio, a respirar exausto
Num amor que juramos que jamais poderia terminar
Promessa ilusória, ceifada pela realidade da morte
Hoje é somente o mito ausente, por trás da névoa
Ah, como me entreguei inteiro a essas recordações
Quedei-me indefeso perante a dor de toda distância
Os ruídos cotidianos, a cidade irresgatável, estéril
Cicatriz corroída sob o linho que cobre os altares
Vejo-te na minha alucinação à porta da nossa casa
Vejo o sangue vertido no caminho, sobre o asfalto
Ao meio dia era sol, à uma, de dor o céu anoiteceu
À noite espero em silêncio, debalde, o teu retorno

 

quarta-feira, julho 16

Herança

O tempo depois de todo o tempo, por incontáveis eras
Dos séculos, das migrações, do vozerio à beira da água
Ainda me quedo à tua espera, coberto do pó da estrada
Tal marca indelével, uma cicatriz de vidas e de mortes
Velha procissão das gentes em seus vestidos coloridos
Eis-me aqui, depois de tudo, transmutado em essência
 
O sol nasce e se põe sem descanso, de tempos remotos
Crestando o calcário, fendendo suas alvas porosidades
Sigo por teus labirintos exercitando a minha pequenez
Na brevidade de mais uma vida, ansiando deixar marcas
Nas paredes, nos pátios, nos mais secretos cantos, a ti
Para que me vejas, na minha transparência quase aérea
 
Chego a este lugar, onde te espero desde todo o tempo
Nos territórios de meu secreto reino, local de mistérios
Onde emanam intocados, todos nossos primevos sonhos
Mas que percorro solitário, aguardando a tua chegada
A fim de destecer as teias dos que nos querem afastar
E por isso te chamo, sob a luz do sol que devora os dias
 
Teu nome foi escrito no sangue a me percorrer as veias
No quadro alegre da memória, ainda brincamos de viver
Entre os muros que limitam mais uma curta existência
Na vocação da espera o que meu peito sente incansável
Os olhos negam sem indulgência à caprichosa esperança
Nesta vigília que sei não virás e a dor é a única herança

 

Saga antiga

Um poeta esculpe pela noite os domínios do seu perfil
Percorre os salões além das casas sem portas da morte
Sobe e desce entre remotas ruas empinadas do centro
Corvo rubro do amanhecer, azul intenso que vem do sol
E ainda que seja só um homem, não há o que o defina
Sua alma finalmente liberta dos grilhões para onde irá
Último cárcere entre as brumas, último amalgama gris
Anjo remisso, quais marcos deixará antes da sua cova
Olha a fuligem sobre as telhas, onde o musgo prolifera
Nas gotas das chuvas que escorrem entre suas gretas
A que servem o estrume, os vermes, plantas e animais
Será o coração tão-só um músculo, não a casa do amor
Todo lugar é apenas mais um lugar, uma outra canção
A vida é uma viagem, um permanente desatar de laços
Minúscula gota de sangue, diluída no escuro da noite
Mas agora é noite e nas noites há que se beber o vinho
Hora de esquecer das cinzas e, enfim, curar as mágoas
Como se pudesse, do nada, ungir cada uma das feridas

 


quinta-feira, julho 10

Heróis

Olho a colina com minha melancólica alma ensanguentada
Estarão por toda parte os que me queiram mal nesta vida
É este o meu destino, enfrentar tantos punhais à espreita
A vida é 0 eco da morte, a borboleta exposta num alfinete
Heróis silentes e imaginários que se desfazem em pedaços
São feridas abertas num jogo de mortalidade sem sedução
Humilhados ou arrogantes, todos derramam sangue e suor
Nesse redemoinho sem esplendores que chamam de viver
Observo os fatos irônicos, fertilizados por essa realidade
O não equilíbrio de quem encalça com serenidade o vazio
Que se iludem a imaginar serem os encantadores de feras
Avatares sombrios despedaçados, negando a imortalidade
O silêncio da noite nega a existência de um amor gratuito
A busca do prazer, mas se encontra apenas impropérios
A paisagem desvanecida na penumbra é o que nos oferece
Corações prisioneiros no êxtase de seus peitos em chamas
Numa manifestação fortuita de toda realidade imprevista
Onde o tempo impreciso de sombras, escapava galopante
Montando em comoção espontânea, o cavalo dos sonhos

  

segunda-feira, julho 7

Pretexto

Não preciso de vãos pretextos para viver sem limites
Inobstante que meu coração lamente a tua ausência
Que tua figura tenha se perdido na fumaça dos dias
Chego a entender o desamor que limita certa gente
E tudo isso me faz escrever versos ao cair da tarde
Ouço ao longe um acordeom, o fole arfando de dor
Ouço o pássaro, sinto a brisa, os perfumes do verão
Certa vez construí um lugar contigo e éramos livres
Mas veio a tormenta, enlouquecida a deixaste entrar
Depois houve o nunca e a autora se perdeu na noite
Hoje teu corpo é naufrágio e não posso te encontrar
Lágrimas que escoam, banhando teus lábios de neon
Os dias correm velozes como nas corredeiras do rio
Benditos os aventureiros que fomos, sobreviventes
Desbravamos o grande labirinto, sem olhar para trás
Semeamos as sementes para reinarem quando árvores
Fomos avisados que não ficaríamos muito no paraíso
Assim escrevi um quadro, pintei um poema inovador
Depois será o silêncio, um vibrante e sonoro silêncio
De quem, ainda vivo e pleno, caminha entre os mortos
Rumando a outras terras, na luz tênue de um abraço

 

sexta-feira, junho 27

Vaivém

Anos passados, eu a encontro ao acaso, ela parece me sorrir
Decido, destarte, por falar de coisas triviais, coisas outras
Nada digo sobre seu perfume, apesar desta noite enevoada
Uma sensação de umidade, a lua ocultada, estrelas alheias
Não será conversa sobre o passado, penso falar de futebol
Isso evitaria abraços e distrações. O que houve foi silêncio
Os ruídos noturnos nos levam ao sofá, contudo o ar gelado
Nos aproxima um tanto a mais que a prudência recomenda
Na chaleira a água vai além do morno, ferve a fazer o café
Não, não pergunte, nem me diga que sente pelo acontecido
Faço uma pausa, escolho outra música para tocar, creio eu
O relógio tiquetaqueia por minutos que se somam em horas
O tempo não se distribui na medida de nossas necessidades
Sabemos o que isso pode fazer-nos (e nem é preciso dizer)
Não importam porquês, a roda do tempo não retorna atrás
Ela deixa sua blusa semiaberta, vê-se a volúpia em sua boca
Nas respostas do que não se perguntou e não se quer saber
Acaso tu te atreves? Atrevo eu, solto o cordão do sapato
Ponho descalços os pés, faço-os tocarem de leve nos seus
Curiosamente ela murmura uma canção antiga, eu conheço
Porque o fazes assim, fica tão difícil não desnudá-la, penso
Carreguei sua foto na carteira por mais tempo que queria
Quando me dou conta já esfregas aquela tatuagem em mim
Ela se adere ao meu peito, sobre todas as cicatrizes de ti
Sinto o calor de teus seios hígidos me roçarem em vaivém
Já não há mais o que fazer, outra vez restamos apenas um
Entre as cobertas, dizes que não queres falar sobre nada
Então que queres que eu faça se tu me olhas com paixão
Além de te tomar em mim, sem ponderar as consequências
Imagino que tu fizeste de caso pensado, mas nem importa
Lá fora a neblina já deu lugar à chuva, não pretendo sair

segunda-feira, junho 23

A palavra proibida

 

Perdemos a noção do tempo
A última lâmpada já não luze mais
As sombras são em multidões
Se achas que nos calou a voz
É porque te parecemos longe
Viva está a palavra que resta
E que ninguém se iluda
Os que se acham vitoriosos
O murmúrio vai elevando o tom
Dobra o silêncio a cada esquina
E segue de braço em braço
O rosto que eles nunca viram
Gatos pardos na noite, afinal
O que é proibido, não mais será
De resto, sobreviveremos
E a palavra jamais proibida

Ode a Van Gogh

 Meu coração endurecido guarda lembrança de voar
Como se isso pudesse me guiar ao fim de um outono
Prevenir-me dessas belezas vazias, não por faltar a
Mas pela ausência de ventos que marquem a direção
Para contornar as melancolias e memórias provisórias
Qual o talismã que me proteja da traição dos infiéis
Ultrapassar os muros nessa fuga das dobras dos dias
 
Partir em meio à insônia de cálidos tempos tropicais
Na inevitável cegueira de todo poeta diante do amor
Assim como sua inútil e imortal esperança no melhor
Ser o cão dócil, de alma gentil ferido por ser franco
Quero semear flores pela orla desta estrada agreste
Onde pousarão as mariposas, cientes de evitar a luz
Caminharão à minha sombra e ouvirei seus lamentos
 
A escuridão em nossa face, nosso medo tão antigo
Às vezes imagino, em verdade, não existir um mundo
Apenas seguimos numa batalha interminável pela luz
Ou talvez bailarinos, que desnudos, buscam a manhã
No sonho, obstinados versos brotam em minha mão
Como os girassóis de Vincent, na primeira luz do sol
Dispo os farrapos, visto o poema novo ali na esquina

segunda-feira, junho 16

Fevereiro

 
Então, os olhos que fizeram morada de tantas lágrimas
Calaram-se qual a tempestade que se despiu dos ventos
Como o pássaro que, engaiolado, abdicou de seu canto
O tempo consumado se saciou na quietude dos minutos
E assim estes olhos passaram muito tempo adormecidos
Numa tarde de outono, era quase noitinha e ela chegou
No meu peito ferido, cicatrizes vibram com sua chegada
Vestia branco, como a verdade que brilha nas clareiras
Abriu a porta para o pássaro voar e ele não foi embora
Antes, lhe pousou no ombro e afinal ali pôde descansar
Um silêncio de céu, mar e luz, um silêncio transluzente
Sob essa luz o pássaro segredou cantos no ouvido dela
E com a ponta dos dedos, esquadrinhou a sua geografia
Sobre suas asas de almíscar, brilhou uma luz lápis-lazúli
As criaturas da terra veem os ponteiros mirarem o céu
Meio-dia é consumado, chegou a hora de colher frutos
O sol cintila sobre o chão crestado, ainda é tão deserto
E a luz dispersa as sombras reunidas à noite, sob a cama
De um sono fustigado e sem sonhos, é preciso acordar
Dar-se conta de que habitava um continente de cegos
E a mentira nutria os espelhos desse mundo sem portas
Empertigo-me na cadeira, a pulsação tranquila e ritmada
Confesso que sei, a morte pode vir no azul do horizonte
Viro a página, risco um poema, afinal
, já não é fevereiro