segunda-feira, junho 16

Fevereiro

 
Então, os olhos que fizeram morada de tantas lágrimas
Calaram-se qual a tempestade que se despiu dos ventos
Como o pássaro que, engaiolado, abdicou de seu canto
O tempo consumado se saciou na quietude dos minutos
E assim estes olhos passaram muito tempo adormecidos
Numa tarde de outono, era quase noitinha e ela chegou
No meu peito ferido, cicatrizes vibram com sua chegada
Vestia branco, como a verdade que brilha nas clareiras
Abriu a porta para o pássaro voar e ele não foi embora
Antes, lhe pousou no ombro e afinal ali pôde descansar
Um silêncio de céu, mar e luz, um silêncio transluzente
Sob essa luz o pássaro segredou cantos no ouvido dela
E com a ponta dos dedos, esquadrinhou a sua geografia
Sobre suas asas de almíscar, brilhou uma luz lápis-lazúli
As criaturas da terra veem os ponteiros mirarem o céu
Meio-dia é consumado, chegou a hora de colher frutos
O sol cintila sobre o chão crestado, ainda é tão deserto
E a luz dispersa as sombras reunidas à noite, sob a cama
De um sono fustigado e sem sonhos, é preciso acordar
Dar-se conta de que habitava um continente de cegos
E a mentira nutria os espelhos desse mundo sem portas
Empertigo-me na cadeira, a pulsação tranquila e ritmada
Confesso que sei, a morte pode vir no azul do horizonte
Viro a página, risco um poema, afinal, já não é fevereiro

terça-feira, junho 3

Contrapontos

A poesia por vezes é o triste oboé, outras o jovial trompete
O poema exercita as sombras nesses sopros, no escuro véu
Tão seco e plúmbeo, avaro de doçuras, em antigos lençóis
Será a morte laboriosa silenciosa num amargo céu de junho
O verso não basta, amar é pouco, nesse galope desvairado
Somos uma densa fábrica de tristezas nesse outono febril
E tudo que resta é desterro, bordado de parcas memórias
Contudo se bem olharmos o moinho da vida, veremos vida
Qual se não morrêssemos amanhã, não morreríamos jamais
Além dos trovões que nos assaltam nas noites de pesadelo
Se provermos os ouvidos abertos virá um som de concerto
Com seus timbres que fazem vibrar os alicerces do silêncio
Mil lâmpadas se acenderão, tramando entre velhos retratos
Pela volta da luz como nunca, em busca de claras memórias
Menos ácidas, entre tantas, nas gavetas azuis do cotidiano
Enfim o poema eclodirá, renascido no amor reencontrado
Nunca mais seremos os mesmos a brilhar na luz do destino
 

domingo, junho 1

Sabedoria

A sabedoria outonal derrubou as últimas folhas rubras
Restou a saudade dos perfumes dos lilases dos anseios
De bocas céticas, de tantas palavras de veludo e cetim
Dos anos passados são tantos os amigos que já partiram
Da nossa tão distante antiga infância restaram suspiros
De crianças que brincavam ao redor dos pés de frutas
Ou de cada letra mal soletrada na palavra elucubração
O sussurro musical daquele rock que meu pai proibira
A relva já seca resplandecia aos reflexos do sol poente
Foi então que descobri, ao acaso, o despertar do amor
Foi então que descobri, ao acaso, a morte inesgotável
E mesmo as cobras que inadvertidamente acariciamos
O vinho e o vento guardam as lembranças adormecidas
Meu olhar errante aos campos de cogumelos e malvas
O júbilo do saxofone a me sorrir pela estrada de seixos
Muito além da encruzilhada onde enfim nos calaremos
Terá o poema e sua foice dourada ceifando caprichos
Ainda que o inverno venha, e virá, inexorável e severo
Nos jardins de lua é hora de sonhar sem ressentimento

 

Desterro

Esse meu desterro permeável, semi-sedentário e surreal
Nele, as palavras se misturam aos lugares que nunca fui
Onde ocorrem as circunstâncias daquilo que nunca vivi
Mas que sinto na minha carne, qual uma saudade porosa
A arte tem essa aura de resgatar memórias inexplicadas
Eu, o romântico concreto, incabido em notas didáticas
Vejo que o dia, entre o céu e o almoço, lambe o tempo
A boca vivente, dois ouvidos em meio ao silêncio abissal
Que deseja, contudo, derruir os frios muros à sua volta
Expor, atrás das máscaras, as inocentes faces de mentir
Estendo as asas imprescindíveis para não deixar rastros
Apenas tanger um torpor imaginário, qual a névoa crua
Lentamente faróis incendiam os rostos dos automóveis
Vejo-os num suspiro p’las janelas abertas pra Via-Láctea
É o anoitecer que nos lança um olhar inteligente a mais
O grilo que, sobre o ombro direito, canta suas crônicas
O dia enfim dissipa e restam homens livres da aparência
Resplandece o céu detrás de todas as máscaras caídas
O que se houve compreendido já não existe neste chão
Um pássaro não confunde o vento em sua nua verdade

  

terça-feira, maio 27

Inspiração

 Sim, bati à tua porta
Bati, dia após dia, que saibas
Um caderno às mãos
Até tê-las trêmulas
Por mendigar tua vinda
Vezes que esperei em vão
Porque faço assim?
Sem esconder a angústia
Ter um quê de vergonha
É por ainda te amar
Doe-me tua avara ausência
O tanto que me ignoras
Oh Poesia!
Porque permites
A tal inspiração
Fugir de mim?



quarta-feira, maio 21

Lírios da Noite

 

De tanto te amar, compus este cântico, sucinta esperança
Neste final de maio, doce como lírios que brotem na noite
Onde brilham as estrelas, tão peculiares de longos outonos
Sei que virás, sob essa luz lilás, tão breve quanto perfumes
Trazendo o olhar, qual astrolábio, a mostrar-me o caminho
 
Se já fui nau à deriva, ora singro presto nas águas sombrias
Meu sextante, flor de macieira, tua face rósea e delicada
Cheira a saudade e ao hálito da brisa matinal ao teu lado
O vento que me ensinaste, enfuna as velas e navego lesto
Chegarei ao primeiro raio de sol trespassando pelas folhas
 
Vesti-me com a couraça da poesia, minha lança de palavras
Trouxe a ti as vozes que ouvi cantar pela planura deserta
Assim me transformei em sonhador da fonte de luz e vida
Quisera cantar no alto das montanhas, seguir os rouxinóis
Ser homem corajoso, descobrir um paraíso simples e claro
 
Esta vida é flama errante, penso que o ontem foi-se rápido
E quão mais afasta, tão maior é a saudade que sinto de ti
Por vezes imagino que ninguém me escuta, só tu me ouves
Se te digo para brincarmos como crianças entre as flores
E esquecermos todo o mal que a vida nos ensinou a temer
 
Na franqueza do coração junto ao rumor cálido do regato
Sob negra abóboda há o poema e uma justa causa a morrer
Qual lírios da noite, o consolo é sentir, onde vá, teu aroma
Vou recitar este poema, acompanhado do coro dos ventos
E onde houve silêncio o país inteiro há de ouvir minha voz

 

quinta-feira, maio 15

Noturno 7.0

 
Na vertigem do tempo interior, nos perdemos sem saber o porquê
Os sentidos desgarrados não concedem luz, não nos encontramos
Nos notamos incompletos, sem a consciência veloz do pensamento
E vamos embora pelo mundo, nos aproximando de múltiplas coisas
Mas nada é o real e, de completo, o que resta é apenas o silêncio
Por vezes, parece que o real é um copo de conhaque e um blues
E que miragens não são mais que um estágio elementar da verdade
Restamos cada vez mais sós, ao abandonar o nosso voo de pássaro
 
Saímos pela porta dos fundos a sorrir, sem que ninguém entenda
O que há de transfigurado nisso tudo, se talvez murmurássemos
Se os fizéssemos pensar que somos justamente como o esperado
Então se satisfariam se nos mostrássemos ser o grande usurpado
É do que o passar do tempo nos livra: da obrigação de ser normal
De corresponder à conduta rude de um tipo normalizado de viver
Integrar a ficto-estabelecida verdade é animar e povoar a solidão
Onde as sensações devam ser as pertinentes à consciência geral
 
Olho os gerânios no jardim, já derramei muitas lágrimas ao chão
Já sofri muitas feridas profundas, porém isso reside no passado
Aprendi que a plenitude está no eterno fluir de princípios e fins
Ouso proteger-me num círculo invisível na minha imortal rebeldia
Onde ninguém me imponha aquilo o que devo entender por beleza
Mas que tudo seja o amálgama de noções que faz do carvão, luz
Onde sei que, não sendo imortal, posso viver segundo a segundo
Desdobrar cada coisa no melhor que dela eu possa vir a conceber
 
Nem julgue que este poeta escreva um poema sem falar do amor
Se de tudo que há na vida é o amor o mais complexo sentimento
O amor não é a chegada, é o caminho e assim terá começo e fim
Como as rosas que nascem, nos encantam e perfumam e se vão
Mas nem por isso deixamos de querer rever sua peculiar beleza
Nem a roseira deixará de ser roseira caso não se cubra de flores
Ah, dirão, o amor é dor. Que o seja, sem amor e dor é só o vazio
O amor é luz radiante, é o sonho, o fogo lento que nos consome
 
Não se olvide o sonho, razão além da razão, de haver o amanhã
O sonho é o fogo que acolhe nossos insucessos e os transmuta
Que se subleva aos furacões e deles faz a brisa que sopra lenta
O sonho é seiva a animar a planta, antes do primeiro raio de sol
De sonho, inconformismo, amor e rebeldia se vão setenta anos
Os quais não nego, mas não os carrego como um pesado fardo
Ainda guardo no peito pequenas ilusões, como frutos maduros
Ergo o cálice, onde não cabem lamentos, apenas rubros taninos

 

 

 



 


domingo, maio 11

Obstinado

 
Um pássaro esquivo cruza os ares gris do crepúsculo
Ouço seu canto que vem sul, ave fugitiva do inverno
Busca o sol d’outras latitudes, que regresse sua luz
Onde habitaria, hipotética calidez, a pulsar na manhã
 
A algidez deste vasto outono que, precário, perdura
Chega a tormenta, o chão crestado vibra em segredo
Oculto do inimigo, versos íntimos quais favos de mel
Que guardei para ti, sob a amena sombra do choupo
 
Entre o silêncio cotidiano, invento a palavra mais crua
Sortilégios do destino, nas entrelinhas, a verdade nua
De raízes profundas, oculta sob a poeira dos séculos
Dissidente da perversa desmemória clama ser e estar
 
Os pássaros já não gorjeiam por esta tão imensa terra
Emudecidos de pavor e espanto, queimou o arvoredo
As mãos são palma e carícia ou serão punho cerrado
Se o poema fere, ao certo não sangra o peito ferido
 
Obstinadamente elevo a voz em cada pedaço de mim
Ilumina-se meu pensamento arde, crepita, se inflama

quarta-feira, maio 7

Selvagem

No silêncio dessa noite, corpos selvagens cheirando a jasmim
Encontram-se e partem entremeados de desejo e fugacidade
Línguas que não se indagam e bocas que não se questionam
Beijando-se horas, com seus punhais lívidos de denso deleite
Apenas se buscam e se encontram, no vai e vem dos quadris
Habitam-se mutuamente entre sussurros, são flor e espinho
Aniquilados com tanto prazer, não há vencido ou vencedor
As marcas que o amor lhes deixou, memórias que não ferem
A luxúria ancorada sem palavras, que não pede explicações
No tato da noite, na ponta dos dedos ele ofereceu o enigma
No tato da noite, na ponta dos dedos ele ofereceu o enigma
Nos mistérios da carne, ela acolheu os desafios a desvendar
Assim se fez sonho e na penumbra brilha a estrela do querer
Sentimentos atemporais, brevemente esconderão a nostalgia
Após um tempo sem início ou fim, convocaram o amanhecer
Do silêncio na noite, de corpos selvagens cheirando a jasmim

 

 


terça-feira, abril 29

Amanhã

Nestas horas sonolentas da noite, cobra-me o tiquetaquear desse relógio
Vir o sono, eivado de solidão e amontoado de minutos ocos e horas vazias
Mas ao invés de dormir tomo a rédea de seres alados, rumo às distâncias
Amanhã cobrar-me-á o despertador que tenha salvo no sonho a esperança
Tu a quem Morfeu cerra os olhos e não imagina o vento etérico que sopra
Como um açoite encolerizado, troando entre o criado mudo e a cabeceira
Antes que o ouro solar irrompa pelas frestas da tua janela tenha atenção!
Que não te acorde o frenesi embriagante das areias de um tempo mágico
Que te clamará a presença por lugares tão familiares quão desconhecidos
Os quadros à tua volta abrirão caminhos para que por eles, curioso, sigas
Por entre as tintas de paisagens amarelecidas desses outonos imaginários
Onde do cimo da sela se ouve verbalizar os gritos amordaçados da utopia
E creia, é tudo real. Mas só o musgo da sabedoria acalmará essas dúvidas
Em meio à morna madorra viajarás se não te magoares com tanta arritmia
O tempo é um eco do tempo e díspar daquele tão milimétrico que admites
Em meus sonhos a noite acontece numa exata proporção de luz e sombra
E assim é que o poema se cria, sem ressalva ou impaciência, já pela manhã
Tudo mais, retas e curvas, residem na promessa viva de uma nova estrofe
Não olvides, mais que vocábulo e verso é a entrelinha que toca ao coração

quinta-feira, abril 24

Irremediavelmente

No desejo atemporal que caminha detrás da tua luz purpúrea
Vejo-te tal o pássaro lascivo, que se aventurou na minha pele
Estrela despontada num céu de sonho, abrasada pelo querer
Que me beija, como se beija o fruto da doçura dos mistérios
E nos momentos de quietude povoa meu corpo até se saciar
 
Então com leveza selvagem, tu rabiscas mapas em meu peito
Para eu navegar pelos labirintos de teus brinquedos de amor
E é assim que tua lembrança floresce no meu mundo surreal
Gotejando teu mel na minha boca, meu elixir, flor do querer
Tatuando-me em segredo os signos onde pretendes me levar
 
Doces palavras de luxúria, vieram ancorar aos meus ouvidos
Enquanto ainda ecoam pela casa, entre sussurros de prazer
O espelho na escalada das horas, nos retrata como sendo um
Teus olhos me despertam como sóis que amanhecem os dias
Dias que perfazem em enigmas à espera de entregas de amor
 
Tu chegas com a penumbra e estendes a noite horas sem fim
Irremediavelmente amor que sempre guarda algo pra decifrar
Sou habitante de tumultuadas instâncias de desejo e espanto
Que tem nas mãos um punhal e não quer ferir senão o tempo
Quando este, insensível, ousa me dizer que é hora de partir

quarta-feira, abril 16

Rosa dos Ventos

O norte eleva-se na multidão, um rumor de nostalgia
Não é sobre a flor aberta, mas a lembrança sepultada
O embrião de uma ideia, a tristeza vinda sem porque
Esse suceder de estações, antigos passos pela escada
Debaixo da lua de um abril onde floresçam os trigais
 
O sul repousa ao pé dos montes das grandes árvores
A noite vem avara de vozes, a quem cabe esta ruína
Sem o pó que o vento alçaria se, distraído, soprasse
Esse sangue poético justamente anônimo e profético
Derramado na calçada ao pé dos sonhos irrealizados
 
Ao leste a sua eterna galhardia de ver o nascer o sol
A rua brilha na chuva debaixo de luminárias amarelas
Cavalgo a palidez da palavra amanhecida à beira mar
Retrato num epitalâmio o amor das ondas e as areias
Na boca da noite, cintila a celebração dos contrários
 
Ao oeste o sorriso franco vem tingir o céu em noite
Permita que te cante versos de palavras esquecidas
E que procelas em sílabas azuis, entoem o flamenco
Lavrando essências de esperança, liberdade e olvido
Ah, essa minha mania de amar-te viva, porém és lenda
 
Mas tu, rosa dos ventos, traze-me teus rios celestes
Para eu poder amar-te líquida, fluindo-me pelas veias
Contrariando as voltas do sisudo carrilhão da matriz
Para amar-te criança pela loura mirada do horizonte
Eternamente amar-te em silêncio qual fosse um deus

segunda-feira, abril 14

Despedida

 Toda despedida deixa marcas de desapegos na vida
Algo tal o que fica entre as lembranças e as cinzas
Que são fruto do medo de sobreviver ao abandono
E afeiçoarmos à solidão quando morta no coração
Toda a ilusão e não mais sonhar, apenas adormecer
Tão pior quando atinge a mão que empunha a pena
Que se faz sossego, não mais o ponto de resistência
Mas se torna parecida com o que sempre combateu
 
A despedida esconde em si o silêncio que é imposto
Nossos últimos arrependimentos, o poço profundo
Dores que não revelo, pelos caminhos desse mundo
Viro a próxima página ainda é sonho, o novo poema
As lágrimas caem do céu, da sombra azul do abismo
O sol que nasce na amplidão e ergue o véu da noite
A noite antiga se desfaz no delírio em cor de ouro
E o dia afasta as sombras na reafirmação do tempo
 
A despedida traz o ar pesado de loucura e paixão
O amor que ela rejeita e que breve olvida a dança
Recolhe asas, segue tropego por caminhos ásperos
De súbito os corpos passam a correr; é o recomeço
Tem início no grande drama, a voz obliqua na boca
O trigo cresce nesta lenda, a disputa de contrários
O sonho frágil, a fábula compõe parte da realidade
O sábio lê o poema, então segue leve qual a nuvem

quarta-feira, abril 9

Chão de Barro

Há dentro deste corpo um passageiro des’que nasci
Desd’aquela velha casa de tijolos, de chão de barro
Ali debaixo do teto nas travessas de madeira nobre
Sopravam vozes do vento, me ensinando a alucinação
De caminhar sempre em frente por todos caminhos
 
Dei-me conta do passageiro, sentado na beira do rio
Um menino já imaginando que haveria do outro lado
E o menino ganhou as distâncias, visitou um mundo
Dentro e fora dos sonhos perfumados como jasmins
E tão brilhantes como os olhos da donzela na janela
 
Juntos, descobrimos o amor numa tarde de outono
Amar me ensinou o sentimento que ilumina a noite
Mas, ensinou também que o céu é a ilusão em azul
Fui assim descobrir o amargo da lágrima na distância
O amor é pássaro que recolheu as asas no passado
 
Que olha o que pode, mas não revela porque pensa
No que restou da paisagem pelos campos de trigais
Assim nasceu meu escrito, cúmplice dessa jornada
Na música tocada nas tardes, ao ranger da carroça
Velhas e lentas rodas, a circular tal qual o destino
 
E o vinho tinto que tinge o véu de veludo estrelado
Que faz escolher o caminho, não se sabe o porquê
Também faz o passado continuar sublime e intocado
Meu passageiro, o estranho em mim, sou eu mesmo
A misturar pedaços da vida secreta com a de poeta

 


terça-feira, abril 8

Venta Vento

Sou ave migratória que carrega a saudade no sobrenome
Ave disciplinada na vida, a sempre oferecer a outra face
E desde menino nunca recebi o lume de provar a verdade
De caligrafia e voz frágeis vivi a dúvida sobre minha arte
Obrigado a buscar acolhida no território oculto da noite
Sem, todavia, permitir a sombra se apossar de minh’alma
Hoje meu poema carrega selos de amargura e melancolia
É assim que minha voz há tanto escondida ora se espalha
Assim poder falar às cinco da tarde de fome e de desejo
Para ser violino, contudo soar muito mais como um oboé
Rebelar-se contra a tristeza qual um trem desgovernado
Espalhar arpejos iluminados por lembrar do amor que foi
E no litígio dos dias desaprender a odiar, é de novo abril
Não temer, prematuramente, pelo inferno ou um abismo
No final do caminho que antes caminhava olhando o céu
Amamos o que não temos, a areia escorrida pelos dedos
Nada se avista o que já ruiu detrás da névoa de outono
Então que vente o vento onde venta viva a tua memória
Na capa do poema onde teu nome, dourado, ainda vibra

quarta-feira, abril 2

Inodora

 

Ah, essa solidão que é feita de toda tua ausência
Um território irreversível toda vez que não estás
Que se cria quando a razão se faz de sentimento
Para delinear o contorno da realidade e do sonho
Esse purgatório que se gera em céus sem estrelas

Adoraria que os relógios parassem na madrugada
Antes que meu coração sangre na tua despedida
Que pudesses te render às armas do meu silêncio
Do meu olhar inundado que dispensa as palavras
Para assim me permitires de novo te enlouquecer

Queria alcançar a razão indecifrável de tuas idas
Abdicando da conveniência em favor da verdade
O porquê te vais se tua boca inda busca a minha
Se trazemos à tona, animal liberto, todo esse cio
Que nenhum labirinto de cimento pode esconder

Só o poema amainará a sina febril dessa ausência
Essa dor necessária, rosa inodora, pétala sem cor

terça-feira, abril 1

Meus Mortos

 
Os meus mortos e meus sonhos andam juntos
Grudados à escuridão que embirro em manter
No rebuliço dos ventos, um meio dia outonal
As cinzas espalhadas sobre o chão crestado
Meus mortos conheço-lhes, de cada, o nome
Sei que até transitam livres por meus versos
Cheiram à loção de barba alcoólica e barata
Os garfos e facas desemparelhados e tortos
Espalhados pelas gavetas da cozinha da casa
Meus mortos, sei-lhes qualidades e defeitos
Subversivos, circunspectos, solenes e outros
As gravatas desalinhadas sobre o terno azul
Um dia a morte nos recolherá para a solidão
Nos juntaremos todos, então, à fila da barca
Aquela mesma de nossos medos mais infantis